Stephen Ward: O jornalismo tem um dever global para com a humanidade e a democracia

Stephen Ward: O jornalismo tem um dever global para com a humanidade e a democracia

Precisamos de um jornalismo corajoso e com meios para enfrentar os desafios contemporâneos da humanidade e da democracia, defendeu Stephen Ward em entrevista. O professor da University of British Columbia teme que a Inteligência Artificial (IA) leve a uma maior pauperização do jornalismo. Receando estar a tornar-se num velho marxista rabugento, Ward, que abriu o segundo dia de trabalhos do 5º Congresso dos Jornalistas, propõe vias alternativas para o bom uso das novas tecnologias e para um jornalismo empenhado democraticamente.

 

Na sua opinião, quais são os temas que um congresso de jornalistas como este deveria abordar?

Como sou especialista em ética, diria que temos de começar a concetualizar o jornalismo como um dever global para com a humanidade e a democracia. Sei que isto parece muito grandioso, mas isto não significa que não amem o vosso país ou que não escrevam sobre notícias locais. Significa apenas que, em caso de conflito, o nacionalismo e a estreiteza de perspetiva não se sobreponham a uma visão mais alargada. Isto significa também aprender a relatar questões globais. Porque os jornalistas vão andar por esse mundo, vão ter de escrever a partir de diferentes culturas e não vão compreender o que estão a relatar. Tive esse problema terrível quando era diretor em Vancouver, onde estávamos rodeados de minorias que tinham vindo para o país: asiáticos, vietnamitas, indianos… Na redação, éramos todos brancos e homens e isso era um problema. Por isso, tive de começar a enviar os meus repórteres para a universidade, para frequentarem cursos sobre a cultura e a língua desses povos. Depois, tentámos recrutar pessoas, mas, às vezes, elas ficavam um pouco nervosas com a cultura dominante: viam-nos, a nós media, como “os brancos”. Mas fizemos alguns progressos. 

A segunda coisa mais importante, para a qual não tenho respostas – o que me está a deixar louco –, é aquilo a que chamo de ecologia social dos jornalistas. Como vão ser as redações para os jornalistas? Vão poder ter alguma palavra a dizer sobre a ética e sobre as histórias que fazem? Será que vão conseguir um emprego? E, se for o caso, será no ambiente ético que se pretende? Suspeito que, em muitos casos, não será. Mas não quero ser totalmente negativo. Ainda existem por aí organizações muito boas. Mas também há cortes no jornalismo e muita coisa negativa. E parece-me que a única forma de mudar isso é os próprios jornalistas organizarem-se, tornarem-se ativistas e criarem os seus próprios meios de comunicação. 

Uma última questão é a desinformação e o terrível declínio da democracia, da comunidade democrática e do espírito democrático. Temos de aprender, enquanto jornalistas, como noticiar sobre pessoas que têm visões extremas e sobre o que consideramos de extremo. Como é que vamos noticiar os demagogos que promovem conspirações e o ódio? É preciso ser crítico e comprometido. Por isso, não sou um grande fã da neutralidade. Há alguns pontos no jornalismo relativamente aos quais se deve ser neutro. Mas acho que os jornalistas têm de encontrar uma forma de aliar os seus valores ao que esperam que a sociedade faça do mundo. No entanto, devem seguir uma boa metodologia, para que as histórias sejam tão exatas quanto possível. Mas se só se preocupam com a metodologia, falta-lhes o coração. Para ser um bom repórter, é preciso ter duas coisas. É preciso ter um desejo ardente de levar boas histórias às pessoas. É preciso querer fazê-lo, porque nos vamos encontrar em muitas situações difíceis. E também é necessário ter um outro lado, que é o de permitir que as histórias sejam postas à prova dos factos, da lógica e das perspetivas de outras pessoas. 

Tenho muito medo de que muitas pessoas no Canadá não recebam notícias de jornalistas formados: é realmente assustador. Não têm ideia do que o parlamento faz; estão nas redes sociais e dizem que o Primeiro-Ministro Trudeau é um ditador. Isto é o que chamo de caos epistemológico. É muito difícil conseguir que as pessoas acreditem que existe uma coisa chamada perito legítimo. Se eu for ao médico, espero que ele seja um perito legítimo. Também nas ciências sociais há melhores e piores investigadores… E assim por diante.

 

As redes sociais e a IA representam duas novas realidades que têm um impacto direto na forma como produzimos e consumimos informação. O que é o jornalismo na atualidade? Como pode o jornalismo global, que aprofundou na sua investigação, ser uma forma de abordar estas questões?

Foto: Maria Carvalho

Deixem-me começar com a IA. Há uma década, estávamos a passar por uma situação idêntica, de arrancar os cabelos. As redes sociais estavam a surgir. A questão era:  seguimos a corrente? Estávamos a ser derrotados nas redes sociais. Passámos por tudo isso e boas organizações, como a BBC, desenvolveram salvaguardas razoáveis. Por isso, penso que temos de fazer o mesmo com a IA. Tem de haver

uma nova forma de regulação. Não estou a apelar à censura. Quando falo sobre isto, alguns jornalistas ficam incomodados. O que falo é de processos públicos e transparentes. Teste-se a IA antes de a utilizar. Depois de fazer um teste limitado e de a avaliar, passe-se, então, para um compromisso a mais longo prazo.

Há dezenas de organizações noticiosas que estão a desenvolver uma linguagem em torno da IA. Mas continuo a pensar que há aqui muitos perigos. Um deles é o de perdermos o nosso emprego para a IA. Não sou um perito em tecnologia, mas sei que é muito fácil para um chatbot criar uma história de texto cheia de mentiras. E sou muito cínico, sou muito desconfiado. Vejo isto como uma possibilidade de as pessoas que querem reduzir o número de jornalistas os substituírem por máquinas que escrevem as histórias.

Agora, começa-se pelo lado mais fácil da questão. Dizemos: “Bem, porque não deixamos a IA fazer  relatórios trimestrais de resultados de empresas? Aquelas coisas são aborrecidas, saem todos os trimestres e são sempre iguais”. É isso que a Associated Press faz. O meu problema é o seguinte: assim que o camelo enfiar o nariz na tenda, é preciso ter cuidado para que ele não se apodere de toda a tenda. É isso que os jornalistas e as suas organizações deviam estar a cuidar. É necessário responsabilizar as pessoas em relação a isto e é também necessária toda uma sucessão de decisões éticas para o fazer.

 

Definiu-se como um cínico…

Estava a brincar. Não acho que toda a gente seja má; nem acho que todas as organizações noticiosas ou os seus proprietários sejam maus. Mas sei que estão no negócio para ganhar dinheiro e vão procurar formas de o fazer. Se isso significar despedir alguns jornalistas ou, talvez, muitos… É com isso que estou preocupado.

 

O novo ecossistema digital é caraterizado por novas formas de participação e de envolvimento na democracia e na produção de notícias. Este contexto pressupõe novas preocupações éticas?

Depende. Se o jornalista utilizar material criado por cidadãos, tem de verificar a sua veracidade, certo? E, agora, com a tecnologia? Há tecnologia a combater a tecnologia. Há vídeos deepfake que estão a ser disseminados e, ao mesmo tempo, tecnologia para identificar fotografias falsas. É como uma corrida ao armamento, admito-o. 

Os jornalistas deviam estar a desenvolver o seu próprio processo ético para lidar com estas histórias. Quando digo ética, não me refiro ao que a nossa mãe nos disse para fazermos, aos Dez Mandamentos ou ao que quer que seja. Para mim, a ética é simplesmente uma coisa muito humana. É como: “será que eu fiz bem o meu trabalho”?  “Prejudiquei alguém desnecessariamente?” “Será que cheguei mesmo à notícia ou fui manipulado?” Quando fui repórter no estrangeiro esse era o meu maior receio. Talvez isto se prenda com essa noção de jornalismo global. O meu maior receio era o de não saber o suficiente sobre o país para onde ia. Cair lá de paraquedas. O jornalismo de paraquedas era grande. Ainda é. Porquê? Poupa-se dinheiro! 

É difícil quando se é um repórter estrangeiro e alguém nos está a dizer algo noutra língua e nós estamos a ouvir através do tradutor. Estamos sempre a pensar se percebemos o que a pessoa quer dizer.  E o tradutor? Ele está a omitir coisas de que não gosta? Eu costumava pegar no meu gravador, enviava as cassetes para Toronto e dizia: “Arranjem um tradutor independente para verificar a tradução”. Às vezes não era assim. Havia coisas que ficavam por fazer. 

 

A falta de recursos dificulta um jornalismo ético?

Absolutamente. Estive em muitos lugares onde conheci jornalistas que diziam: “Não temos liberdade política e económica. Somos pagos horrivelmente e temos de ter três  empregos para sobreviver. Esses empregos são muitas vezes contraditórios entre si. Eu trabalho no sistema de saúde, mas ao mesmo tempo é suposto eu fazer reportagens sobre isso”. 

Não me levem a mal, não sei o que pensam de Marx, mas torno-me numa espécie de velho marxista rabugento sempre que olho para aquilo a que ele chamou de condições materiais da sociedade. Gostaria de ver os jornalistas e as organizações a ajudar as pessoas a criar melhores condições materiais e sociais para as redações.

 

Historicamente, o jornalismo e a democracia sempre andaram de mãos dadas. Podemos dizer que o seu estudo Objectively Engaged Journalism corresponde a um compromisso com a democracia?

Sem dúvida. É um jornalismo democraticamente comprometido; e usa a objetividade. Mas eu tenho um conceito muito específico de objetividade. Admito que sou absolutamente devoto da democracia igualitária. Mesmo relativamente à democracia, temos de explicitar de que tipo de democracia falamos. Democracia elitista? Não. Igualitária? Sim. Eu quero uma grande declaração de direitos, que proteja as minorias da maioria, etc.. Essa é a minha visão política. O papel do jornalismo é proteger e manter isso, e nunca foi tão importante fazê-lo. Não tenho soluções definitivas. 

Devíamos conseguir ter grandes organizações noticiosas e jornalistas comprometidos democraticamente e capazes de alertar as pessoas quando dizem coisas muito estúpidas sobre a democracia ou quando prejudicam os direitos das minorias.

John Dewey disse que a dimensão mais importante da democracia não tem a ver com leis formais. Claro que precisamos de leis e garantias. Mas, em democracia, trata-se de estarmos dispostos a discordar uns dos outros de uma forma razoável e alargada a toda a sociedade. É isso que estamos a perder. Nós já não nos ouvimos; gritamos uns com os outros. 

 

Afirma que não quer que os jornalistas tenham como único objetivo a objetividade. Isso não pode levar ao descrédito do jornalismo no contexto político atual?

Aquilo de que eu não gosto é do modelo antiquado da objetividade do início século XX, que se resumia aos factos e à falsa suposição epistemológica de que se podia separar o que se observa daquilo que se interpreta ou se coloca como hipótese. Apesar de esse modelo se ter alterado, as pessoas ainda recorrem a essa noção. Enquanto repórteres acabamos por importar enquadramentos e valores que são nossos. Podemos não estar cientes dos nossos enviesamentos, mas a forma como funcionamos concetualmente leva-nos a isso.

No entanto, estou a evitar a parte difícil da pergunta: é possível que os jornalistas, se  fizerem o que eu digo, saiam prejudicados? Respondendo honestamente, sim. É possível que sim. Mas penso que, no geral, talvez isso signifique apenas ter de explicar ao público que tipo de jornalismo fazemos. Por isso, quando se chama mentiroso a Donald Trump, diz-se: “Eis quantas vezes mentiu. Aqui estão os factos. Não estou a dizer isto só porque sou liberal e não gosto de Donald Trump”. É aqui que entra o método. Não se pode apenas ser um estenógrafo numa sala de audiências e dizer: “O juiz disse isto, esta pessoa disse isto e  aquela outra disso aquilo”.

 

Com base na sua experiência como professor de jornalismo, o que considera serem temas fundamentais na formação de futuros jornalistas?

Provavelmente, já disse tudo, mas acho que uma coisa essencial é que temos de saber mais sobre o mundo. Portanto, não se trata apenas de aprender a tecnologia mais recente. Não se trata apenas de conhecer o próximo modelo, a próxima câmara Canon. Isso é importante, claro. O que acontece é que isso está a consumir demasiado tempo  e espaço no ensino e nos programas de formação. 

E quais são as outras coisas que faltam? Aprender sobre outras culturas, conhecimento cultural, conhecimento histórico… Pelo menos ao nível da licenciatura, especializem-se numa determinada área de jornalismo, como o ambiente. Se vão cobrir o ambiente, têm cursos de estudos ambientais nas universidades. O mesmo acontece com os estudos sobre pandemias. Quem sabia o que era a Organização

Foto: Maria Carvalho

Mundial de Saúde (OMS) até ao aparecimento da pandemia? Muitos jornalistas diziam, a coçar as cabeças: “Como é que isto funciona?” 

Não se pode antecipar todo o tipo de histórias, mas, se tivermos mais jornalistas especializados na redação, começamos por ter melhor ambiente. Depois, temos pessoas com diferentes  competências e que podem falar umas com as outras. As competências de investigação e a capacidade de usar computadores oferecem uma vantagem enquanto ferramenta de pesquisa, mas não como uma ferramenta de escrita de histórias.

Todas as tecnologias têm os seus prós e contras. Estou um pouco preocupado com o estado atual do uso das tecnologias. De repente, está toda a gente alarmada com a IA. Porém, só agora é que estamos a recuperar o atraso em relação às questões da regulação. Há cerca de dois anos, fiz um inquérito e não consegui encontrar qualquer referência à IA nos códigos de ética… Contudo, estas questões da computação e da IA não são inteiramente novas.  Costumava ir a reuniões da Associação Canadiana de Jornalistas, muito parecidas com este Congresso, e eles promoviam, numa sala especial, seminários intensos sobre aquilo a que na altura chamavam de jornalismo assistido por computador. Basicamente, era pegar num monte de dados e aprender a criar um programa que os pudesse analisar. Se obtivermos todos os acidentes com autocarros escolares na nossa cidade durante dez anos, podemos metê-los num computador e isso pode ajudar-nos a encontrar padrões. Portanto, sim, há coisas muito boas por aí… e impossibilidades.

 

O que é que tudo isto traz para as novas gerações de jornalistas? 

Espero que sejam muito mais firmes do que aquilo que eu fui, que não tenham medo de falar pelo vosso mundo, caso contrário ele não existirá por muito mais tempo. Aqui está a parte sombria da minha entrevista. Acredito mesmo que, dado o arsenal nuclear de que dispomos e os maus atores que temos em cena, precisamos de um jornalismo corajoso e de um verdadeiro jornalismo que tenha as condições materiais e as possibilidades de enfrentar estes problemas. E, sim, se isso significa que por vezes temos de tomar uma posição, desde que seja bem informada, não me importo com isso. 

Com Carlos Camponez e João Miranda

 

 

Foto: Maria Carvalho
Stephen Ward

Fundador do Center for Journalism Ethics e do Comité de Ética da Associação de Jornalistas Canadianos, Stephen Ward é professor da Escola de Jornalismo da University of British Columbia, que ajudou a criar.

A sua investigação tem-se focado em diferentes dimensões da responsabilidade e deontologia do jornalismo. Nos últimos anos, tem prestado particular atenção às questões éticas do jornalismo num mundo globalizado, aos desafios da inteligência artificial e generativa, às notícias produzidas por cidadãos e a um jornalismo comprometido com a democracia.
Entre a sua vasta obra académica, destacamos livros como Radical Media Ethics (2015), Disrupting Journalism Ethics (2018), Ethical Journalism in a Populist Age (2018) e Objectively Engaged Journalism (2019).

Por: Emily Orquera | IADE - Universidade Europeia | Madalena Moreira | Universidade Católica Portuguesa | Maria Rego | Universidade do Porto | Nádia Neto | Universidade do Porto
Fotografia: Maria Carvalho