“Amputadas”, assim eram as notícias na ditadura

“Amputadas”, assim eram as notícias na ditadura

À saída do lançamento do novo livro “25 de abril de 1974 – noticiar a liberdade”, encontramos o jornalista Adelino Gomes. Se calhar, conhece-o da Rádio Clube Português ou então recorda-se da sua voz na Rádio Renascença. Não é assim tão fácil, aos tempos que correm, imaginar os dias de ditadura. Mas, entre as vitrines do cinema São Jorge repletas de memórias de um tempo pré-liberdade, Adelino Gomes leva-nos numa viagem sobre como era escrever em tempos de ditadura.

 

 

Em 1966, Adelino já caminhava as ruas do ofício a meias com uma luta inglória. Vivia dividido: “Vou aceitar ou vou rebelar-me?”. Não era uma coisa fácil. Rebelar-se significava várias coisas, especialmente para os jornalistas. Não era apenas pôr em risco o emprego, mas também a sua liberdade enquanto cidadão.

Era nessa dicotomia entre jornalista e cidadão que habitava a importância da camaradagem entre colegas de profissão. Como o antigo jornalista conta, já quando estava na rádio universidade, entre amigos, discutia-se esta coisa do que se podia ou não falar.

Foi numa das primeiras noites a trabalhar na Rádio Clube Português que se apercebeu do que estava a acontecer no jornalismo. O seu lead era apenas sobre um avião B54 abatido no Vietnam. Em tempo de ditadura, havia sempre uma ligação ao gabinete de censura.

“Sim senhor”, foi-lhe dito, “pode ser publicada, mas sem o parágrafo seguinte”. E este texto a ser cortado nada mais dizia para além da quantidade de aviões B54 que tinham sido abatidos nos céus do Vietnam. Apercebeu-se aqui, que as suas notícias estavam a ser amputadas, recorda. Retiravam-lhes o contexto, impedindo o ouvinte de navegar na notícia e perceber as referências.

O primeiro encontro com a realidade opressiva passou, mas a dúvida ficou. Estaria Adelino Gomes disposto a dar notícias pela metade a quem o ouvia? Passados seis anos na profissão, esta pergunta já lhe enchia a cabeça.

Dar a notícia do assalto à aldeia olímpica de Munique foi o que considera ser o seu primeiro desafio na rádio. Terroristas interromperam a rotina do evento desportivo com uma tragédia. Entre o que devia noticiar e o que queria, escolheu a última hipótese.

O que é que lhe custou a decisão? “O grande orgulho de dizer aquilo que tinha a dizer aos meus ouvintes, dar o contexto, acarretou-me ser proibido de trabalhar até ao 25 de abril”, relembra Adelino. Para ele, desânimo não descreve o que se vivia dentro das redações. Era mais um estado de consciência da situação política.

É impossível falar do que é noticiar em censura hoje, sem espreitar atrás da cortina do passado. Como foi dizer ao país que estava livre? Adelino não esconde nada quando se fala deste dia. Após o lançamento do livro, emocionou-se com a presença de todos – antigos e novos jornalistas – a celebrarem os 50 anos de liberdade, mas também o jornalismo.

Esteve proibido de falar aos seus ouvintes. Mas foi ele que, com a calma de quem ia absorvendo o que estava a acontecer à sua volta, descreveu que assistiu “ao nascimento da liberdade”.

Embora esteja neste caminho saudoso, ainda que amargo, Adelino Gomes diz que o presente não é livre de desafios. Livramo-nos da ditadura, mas há ainda lutas por vencer.

“Todos os dias há uma lição dada aos jovens jornalistas e aspirantes, uma delas é a luta dos trabalhadores do Global Media”, aponta o jornalista. Estão neste grupo reunidas várias ameaças que merecem resistência e atenção em nome da liberdade e o direito ao trabalho. Para o jornalista, os jovens devem pôr os olhos nestes trabalhadores e jornalistas unidos numa luta coletiva que não querem abandonar a sua profissão, que querem continuar. Abandonar a profissão, nas palavras de Adelino, é uma responsabilidade enorme, porque é ajudar a que diminuía a liberdade de informação e o direito do povo à informação.

Por: Raquel Sequeira | Universidade da Beira Interior
Fotografia: Pedro Esteves | Instituto Politécnico de Viseu