Discutir jornalismo: as verdadeiras preocupações dos trabalhadores

Discutir jornalismo: as verdadeiras preocupações dos trabalhadores

O 5.º Congresso dos Jornalistas deu palco a debates, reflexões e reivindicações que crescem e se multiplicam a partir da discussão sobre jornalismo. Vários profissionais e académicos por todo o país preocuparam-se em dar voz às verdadeiras preocupações dos jornalistas, devolvendo ao Cinema São Jorge o verdadeiro grito da classe. Estas foram algumas das comunicações que serviram de reflexão durante os quatro dias de trabalhos.

“Os jornalistas não são notícia”

A manhã de sexta-feira, dia 19, ficou marcada pela denúncia de uma classe descredibilizada, estagnada e com dificuldades em refletir sobre si mesma. Paulo Martins, jornalista e investigador, começou por propor dez perguntas que arrancaram a conversa e colocaram a tónica na necessidade de refletir sobre a responsabilidade e responsabilização dos jornalistas.

Perante a interrogação “Que jornalismo é este?”, Sofia Branco, jornalista e professora, desafia os congressistas a regressar à redação e a questionar comportamentos enraizados na cultura mediática portuguesa. Entre eles estão a falta de diversidade no jornalismo, a submissão às lógicas de consumo capitalistas, a falta de momentos de reflexão e discussão ética dentro das redações e a necessidade de separar jornalismo com e sem qualidade, “o trigo do joio”.

Em entrevista, Sofia Branco reflete sobre os modelos de narrativa noticiosa e organização empresarial, no que diz respeito à representatividade de género e cultura. A docente denota “o óbvio desequilíbrio nos cargos de chefia e liderança”, apesar de considerar que o jornalismo é uma profissão paritária e que, até agora, foi traçado um longo caminho de trabalho nesse sentido. A par disso, acredita que é preciso ser mais exigente na forma como cada fonte é representada nos órgãos de comunicação social: “há mulheres especialistas em várias áreas em Portugal que não estão a ser ouvidas nem são sujeitos de notícia, tal como não são fonte pessoas de outra etnia, comunidade, classe social, sem serem de cor branca, o que é gravíssimo”.

Em relação à intrusão das lógicas de consumo comerciais nos media, Paulo Martins recorre às expressões “Informação ‘fast food’”, “capitalismo informacional”, e “escravos de visualizações” para alertar para o problema. Sofia Branco reforça esta ideia, criticando os efeitos da concorrência na produção de conteúdo vazio e os perigos da dependência de publicidade. Tiago Dias, jornalista, também subiu ao palco do Cinema São Jorge, levando consigo o tom angustiado que se sentia na sala. O jornalista mostra-se preocupado com as disparidades do financiamento dos media e alerta para a necessidade de a classe se unir e discutir estes assuntos.

Todas as comunicações concluíram que o os temas debatidos têm contribuído para uma descredibilização crónica do trabalho noticioso e, para reverter isso, é necessário que os próprios jornalistas discutam uns com os outros, sobre uns e os outros. No seguimento da intervenção de Paulo Martins, Sofia Branco exige um maior rigor na autorregulação dos trabalhos publicados. Através dos Conselhos de Redação, em vias de extinção nas redações, “os jornalistas têm de conseguir discutir o que acontece diariamente do ponto de vista editorial e ético”, refere. “Se uma pessoa viola o código deontológico todos os dias, não pode ser jornalista e tem que lhe ser tirada a carteira”, finaliza.

A situação do Global Media Group, a precariedade, os despedimentos, a angústia, são motivos de revolta dos jornalistas em luta, sentimento que se prolonga pelos dias do Congresso e se vê propagar pela plateia do anfiteatro. Rui Cardoso, jornalista, numa crítica aos “pontapés à gramática” e a falta de rigor no uso de expressões e descrições, sobe a palco num apelo pelo respeito pela linguagem, “a ferramenta de trabalho do jornalismo”. 

Como financiar o jornalismo? 

O terceiro dia, dia 20, do Congresso teve como temas de reflexão as dificuldades do jornalismo local e as condições laborais precárias dos jornalistas. Durante a manhã, Francisco Alves Rito, diretor do Setubalense, alerta para a urgência de lutar contra a sobreposição de competências de jornalistas em funções, a pressão das câmaras municipais nas escolhas editoriais e o conflito de interesse das direções de muitos órgãos de comunicação regionais. Tal como proferido várias vezes ao longo do Congresso, Francisco Alves Rito insiste: “todos sabemos e ninguém faz nada, não nos podemos calar”.

Ao final da tarde, mais seis jornalistas e professores apresentaram as suas comunicações sobre o financiamento dos media, assunto que marcou os diferentes painéis do dia. José Manuel Mestre, jornalista, acredita que é necessário encontrar novos modelos de financiamento e criar legislação para media sem fins lucrativos. A perspetiva para o futuro do jornalismo é diferente para todos os congressistas, mas, segundo o autor da comunicação, é transversal a vontade de garantir a total independência, liberdade e credibilidade do jornalismo face aos investidores.

Sofia Branco regressa a palco para debater o papel do estado no financiamento dos meios de comunicação. Com a audiência fixada no seu discurso, encantada pela partilha emocionada do jornalista e, ao mesmo tempo, atormentada pelas suas palavras cortantes, Miguel Carvalho, jornalista, reflete sobre as consequências da intrusão dos acionistas. “Um jornalismo exaurido é um risco para a sobrevivência de uma cidadania critica, exigente e participativa”, exclama.

Em nome de colegas jornalistas, Sofia Craveiro, jornalista, apresenta uma proposta de financiamento que visa ter em conta o jornalismo local, regional, comunitário e alternativo. O grupo defende o reconhecimento do jornalismo como um bem público, ao qual deve ser alocado financiamento com igual distribuição. Dirigindo-se à organização do Congresso, Sofia Craveiro dá voz aos jornalistas de meios alternativos que criticam a falta de representatividade da sua realidade nos painéis do Congresso sobre financiamento.

A jornalista deixa claro que não tem a intenção de desvalorizar a situação dos colegas, no entanto, constata em entrevista que “há muitos casos semelhantes ao Global Media por esse país fora, com modelos de financiamento instáveis”. No caso dos media não-tradicionais em particular, lembra que “há pessoas que vivem em instabilidade todos os dias por convicção, porque não acreditam que o jornalismo possa acontecer de forma completamente idónea dentro dos grandes grupos económicos”, pelo que considera essencial que sejam debatidas soluções para esses modelos.

Algumas das propostas que defende para apoiar modelos inovadores, que “assentam noutros pressupostos que não o jornalismo como produto”, passam por equiparar o serviço público do jornalismo a um serviço cultural, com financiamento público e doações, explica. Estes modelos visam servir também os meios de comunicação de maior dimensão, uma vez que, de acordo com Sofia Craveiro, é comum entre meios diferentes a luta por condições de trabalho dignas.

Na comunicação, o grupo propõe a criação de um grupo de trabalho que desenvolva propostas sobre modelos de financiamento do jornalismo, com entidades das principais estruturas de regulação da profissão. A par de Sofia Craveiro, 16 profissionais subscrevem o texto apresentado.

Os atores mediáticos e a falta de representatividade

As comunicações da manhã do último dia, 21, arrancam com uma intervenção impactante de João Rosário, jornalista, sobre a representação de uma ideologia saudosista e imperial, que remonta ao período colonial e promove, passados 50 anos, narrativas racistas e discriminatórias. O jornalista denuncia a violência e comportamentos de exclusão promovidos pelos meios de comunicação.

João Rosário critica o facto de o jornalismo ter deixado de contar histórias “sobre pessoas”, e ter passado a fazê-lo sobre “representações construídas a partir de uma ideologia do passado que não reconhece a riqueza que o país ganhou”. Sem pudor, classifica a sociedade portuguesa de racista e lembra que os media não têm desempenhado com rigor a sua função no combate à desigualdade.

Aline Flor, jornalista, dirigiu-se aos congressistas em nome de um grupo de mulheres jornalistas, subscritoras da comunicação, sobre as desigualdades de género na profissão e na sociedade em geral. As jornalistas autoras da moção apresentaram cinco propostas com vista à paridade, dignidade e segurança laboral para todas as mulheres jornalistas.

Ainda sobre a falta de representatividade nos media, João Figueira, professor e investigador, numa reflexão sobre o desempenho do jornalismo e do jornalista na construção da democracia, denuncia a parca diversidade de atores noticiosos que habitam o espaço mediático. Na tese que apresenta, o professor defende que o populismo mediático deve ser recusado e o rigor ético exigido, em prol da concretização e defesa da democracia.

Para fechar a última comunicação, Isabel Nery, investigadora, apresentou o tema da inteligência artificial e a relação com o digital como um perigo para a sociedade e para o futuro. De acordo com o estudo que apresenta, a ausência de uma cultura de estudo através do papel pode ter graves impactos no desenvolvimento do espírito crítico dos leitores. Apesar de o digital favorecer os modelos económicos, põe em causa uma série de fatores que a académica considera de urgente reflexão. Carlos Camponez, professor, investigador e referência no estudo da regulação do jornalismo em Portugal, termina defendendo a criação de um conselho de imprensa, com a integração da participação do público nos momentos de discussão.

Dos vários momentos de intervenção, o V Congresso dos Jornalistas resume-se em três tópicos: a necessidade de falar sobre as dificuldades da classe e criar mais momentos de discussão, os problemas do financiamento dos media e a falta de representatividade no espaço mediático.

Jornalistas e futuros jornalistas encontraram-se durante os quatro dias de Congresso pela paixão comum e levam consigo a tarefa de procurar soluções para a sustentabilidade da profissão, entoando: Jornalismo Sempre!

Por: Ana Filipa Paz | Universidade de Coimbra
Fotografia: Maria Carvalho