Jornalismo de guerra: “Bem-vindos ao inferno”

Jornalismo de guerra: “Bem-vindos ao inferno”

Três repórteres portugueses habituados a atuar em zonas de guerra partilham a experiência de exercer jornalismo de baixo de fogo. Na bagagem, guardam histórias e memórias com rosto, mas também traumas que é preciso curar

 

Representados no cinema como heróis, a realidade dos jornalistas de guerra é bem diferente da retratada pela ficção. Em nome da verdade e quando estão em causa valores humanistas, a missão é mostrar, de forma crua e em primeira mão, os acontecimentos que estão a reportar, na tentativa de alertar o mundo. Este tipo de jornalismo requer que o correspondente tenha força mental e capacidade para transmitir os acontecimentos mais fortes ao público da melhor forma possível. Filipe Caetano, ex-jornalista da CNN Portugal e da TVI, que recentemente decidiu seguir o seu percurso como freelancer, João Porfírio, Observador, e Cândida Pinto, RTP, contam como é exercer jornalismo debaixo de fogo.

 

fotografia via Instagram @filicaetano

 

A preparação para este tipo de cobertura é quase impossível. João Porfírio, que fotografou os conflitos na Síria, no Iraque e na Ucrânia, menciona o efeito surpresa e de inesperado de trabalhar em palcos de guerra, o que obriga os repórteres a moldarem-se à força das circunstâncias: “Quando vamos para o terreno, não sabemos o que vamos encontrar, onde vamos dormir ou com quem vamos estar. A preparação é quase nula, não há uma maneira ideal de se preparar.”

Cândida Pinto, que realizou igualmente cobertura destes dois conflitos, explica que o seu método de preparação é apenas ler o máximo possível sobre o ocorrido: “Estou disponível para ouvir versões diferentes sobre a mesma realidade.” Durante o conflito na Ucrânia, Filipe Caetano deslocou-se ao país cinco vezes, onde permaneceu mais de cem dias. Na primeira vez, foi como se estivesse a fazer uma viagem normal ao estrangeiro. Seguiu na companhia do repórter de imagem da estação para a qual trabalhava e levou apenas o equipamento necessário. Já na segunda vez, cerca de uma semana antes do início do conflito, já foi necessário munir-se de coletes à prova de bala e de capacetes militares. Com o decorrer da guerra, a preparação tornou-se cada vez mais complexa. Questões como o alojamento ou a contratação de um fixer que acompanhasse a equipa no terreno tiveram de ser acauteladas. “Toda esta logística é extremamente relevante”, explica.

 

Cândida Pinto : Fotografia de Afonso Rodrigues – ISMT

Apesar daquilo que muitas pessoas podem pensar, Filipe Caetano revela que, enquanto está no terreno, não sente dificuldade em gerir as emoções: “Há um cansaço acumulado devido às poucas horas de sono e à má alimentação. Não há um dia de descanso. Mas a gestão de emoções, a nível pessoal, torna-se mais evidente quando regressamos a casa e temos a constatação de que houve situações que levam algum tempo a digerir. Enquanto estamos lá, acho que não existe uma reflexão sobre isso, porque nos encontramos em modo ativo, numa adrenalina constante de orientação de execução do que temos de fazer num ambiente muito hostil para a realização das reportagens.” Há, sobretudo, uma urgência em informar, em ir até aos locais aos quais o cidadão comum não tem acesso. “Como jornalista, a única forma de lidar com esta violência é denunciá-la, não senti-la. É tentar encontrar histórias, pessoas, situações que nos permitam explicar o que se está a passar”, defende.

O terror da guerra

O perigo e horror podem tornar a missão no terreno bastante complicada. Os correspondentes de guerra são frequentemente expostos a situações extremas que põem as suas vidas em risco. Cândida Pinto considera que, em terreno de guerra, o medo é um aliado e que não são os momentos de maior agitação que mais a assustam: “O medo permite-nos não avançar para zonas de onde podemos não voltar. Tenho muito medo do silêncio, afasto-me de situações onde não se ouve nada porque não sei o que está a acontecer, são as mais imprevisíveis.”

João Porfírio partilha uma experiência que viveu ao fazer a cobertura da guerra na Ucrânia, quando a zona onde estava hospedado foi bombardeada. “O nosso hotel foi dos únicos edifícios que ficaram ilesos. Estávamos na cave do hotel havia já bastantes horas e, felizmente, só a parte da frente ficou destruída. Tivemos de sair pelas traseiras, mas nada atingiu estruturalmente o hotel que fizesse com que ficássemos feridos. Aí pensei mesmo que podia ter corrido mesmo bastante mal”, revela. Filipe Caetano também enfrentou momentos de alguma tensão. Apesar de afirmar nunca ter sentido medo, conta que, nos arredores de Kharkiv, uma aldeia perto da fronteira com a Rússia, deparou-se com vários bloqueios do exército. Tinha sugerido ao fixer que o acompanhava que fossem até lá, algo que ele não aconselhou, mas, mesmo assim, foi com eles. “Queríamos encontrar residentes locais que nos pudessem explicar como foi ter estado sob ocupação russa. Quando lá entrámos, vimos um cenário absoluto de filme de guerra. Mas era a realidade.” O repórter não esquece os edifícios destruídos, postos de alta tensão caídos, pessoas a cambalear e coisas a arder. Junto a um apeadeiro destruído, lia-se, em ucraniano: «Bem-vindos ao Inferno». “Nisto, ouvimos explosões muito próximas.” O seu colega começou de imediato a filmar, estava em êxtase. Nesse momento, Filipe Caetano percebeu que tinha de controlar o seu ímpeto. “Houve muita tensão e sentimos dificuldades. Mas medo não foi algo que senti, sinceramente.”

 

João Porfírio em reportagem

 

Salvaguardar a segurança do jornalista, mesmo quando a adrenalina e a emoção levam a baixar a guarda, continua a ser essencial. “Temos de ter muito cuidado, é preciso conhecer as técnicas militares, aquilo que se passa no terreno, onde é que estão as tropas inimigas. Também nos cabe saber isso e não apenas relatar. É importante ter algum conhecimento militar para evitar que essas coisas aconteçam. Não há uma imagem que valha a nossa vida e, portanto, arriscar não nos leva a lado nenhum. Isso faz com que muitos jornalistas sejam feridos ou até mesmo mortos. Mas os mísseis caem nos sítios onde menos se espera e nada garantia que não caísse alguma vez em cima de mim. Felizmente, nunca aconteceu”, conta João Porfírio.

Partilha da realidade

Neste tipo de cobertura, é muito frequente que as imagens transmitidas sejam de conteúdo mais sensível, mas Filipe Caetano explica que há sempre um cuidado no processo de seleção. Mesmo que seja preciso desfocar a imagem e avisar os espectadores do seu carácter mais sensível, é necessário denunciar essa realidade, mostrar ao mundo o que está a acontecer a estas pessoas. “Nesta questão de um conflito tão violento e surpreendente, que juntou muito as atenções das pessoas, havia um interesse de toda a gente sobre o que se estava a passar. Mas, agora, já não há assim tantos correspondentes estabelecidos na Ucrânia. A nível mediático, há um desafio muito grande para os jornalistas de continuarem o conflito. É cada vez mais difícil suscitar o interesse e quebrar o automatismo da sociedade em relação à situação na Ucrânia. As pessoas perguntam se não está tudo na mesma. Na verdade, está tudo mais ou menos na mesma, mas isso não quer dizer que esteja bem. Os ataques a cidades ucranianas persistem, continua a ocorrer uma agressão permanente de um país por parte de um país opressor, de uma invasão presente, de uma defesa constante por parte dos ucranianos e uma tentativa de reconquista dos seus territórios.” O jornalista pode trazer algum sentido de justiça a estas pessoas, ao mostrar interesse pelas suas histórias e ao expor estes acontecimentos.

 

Importância da saúde mental

 

No terreno, a adrenalina permite que o jornalista se mantenha atento, não deixando espaço para que se sinta medo perante as situações a que se é submetido. Mas quando se regressa a casa a história é diferente. Tanto João Porfírio como Filipe Caetano confessam que lhes foi diagnosticado stresse pós-traumático. O apoio de psicólogos e de psiquiatras mostra-se muito importante nestas situações. É graças a este apoio que os jornalistas dizem não sofrer, atualmente, com este problema, apesar de continuarem medicados. “Ninguém passa por um conflito incólume. Não somos super-homens ou supermulheres. Viver um conflito 24 horas por dia não é normal, temos de ter consciência disso e sarar as nossas feridas para podermos continuar”, realça Cândida Pinto.

A questão da saúde mental dos jornalistas, sobretudo, a dos correspondentes de guerra, é pouco discutida. “Entristece-me que não seja um tema abordado com frequência na comunidade jornalística porque tenho a sensação que um jornalista que tenha um problema deste tipo é visto como uma espécie de fraqueza, o que é altamente injusto. Filipe Caetano também considera que “a saúde mental dos jornalistas não é muito falada”. No entanto, João Porfírio integrou, na passada sexta-feira, dia 19, o painel “Jornalismo e saúde mental”, no 5º Congresso dos Jornalistas, mostrando que algo possa estar a mudar.

Apesar de tudo, os três jornalistas dizem estar muito satisfeitos com o caminho que traçaram até hoje. Enquanto estudante de Jornalismo, Filipe Caetano sempre sonhou em ser correspondente de guerra. “Costumava ter uma visão do jornalismo de guerra muito romantizada, como se fosse exatamente como num filme. Em termos de realização profissional, estou muito satisfeito com o caminho que fiz até aqui, mas sinto a necessidade de ir ao encontro de outros objetivos profissionais. Não estou nada arrependido de tudo o que eu vivi.” Já João Porfírio e Cândida Pinto admitem não ter escolhido este trajeto, que foi fruto do acaso. “Apesar de não ter sido uma escolha ou uma imposição, era algo que eu sempre gostava de ter feito e aproveitei uma desgraça, daquilo que estava a acontecer, para aceitar e para ir. Podia ter acontecido, como a colegas meus, de terem ido, não terem gostado, não se terem sentido bem e terem pedido para voltar para casa, mas não aconteceu isso comigo. É um ambiente onde eu me sinto relativamente confortável e, portanto, tenho aceitado consecutivamente ir para esses cenários”, conta o fotojornalista do Observador.

Cândida Pinto explica que um repórter de guerra necessita de ter algumas características: “É preciso ter calma, ponderação, estar muito atento, ter rigor, muita curiosidade e disponibilidade para o desconforto porque, normalmente, passa-se por zonas de muito desconforto.”

 

Morte de jornalistas

A Federação Internacional de Jornalistas documentou a morte de 94 profissionais em 2023. Mais de um jornalista foi morto por dia no conflito ativo na Faixa de Gaza, desde 7 de outubro do ano anterior. Setenta e dois por cento das mortes de jornalistas no mundo ocorreram na Faixa de Gaza, onde os jornalistas têm sido alvo do exército israelense. No meio de tanta “morte acidental”, estão jornalistas, repórteres, fotojornalistas, editores, técnicos, entre ouros profissionais, pessoas que estavam apenas a exercer uma profissão, em nome da qual perderam a vida. A Federação Internacional de Jornalistas insiste que é urgente tomar medidas decisivas e é necessária uma ação por parte da comunidade internacional para salvaguardar as vidas dos jornalistas e responsabilizar os responsáveis.

 

Por: Eva Santos e Inês Gonçalves | Escola Superior de Comunicação Social e Rita Casqueiro | Universidade Lusófona
Fotografia: Afonso Rodrigues | Instituto Superior Miguel Torga