Sofia Branco: Salvar o jornalismo

Sofia Branco: Salvar o jornalismo

A comunicação social é um setor em crise acentuada e prolongada, enfrentando graves problemas de sustentabilidade. As políticas públicas não podem ignorar as dificuldades das empresas de comunicação, nem o crescente desemprego entre os jornalistas, sujeitos a salários indignos e vínculos precários. Tempos excecionais exigem medidas excecionais. É imperioso debater o papel do Estado, que pode fazer mais, e convocar todos, empresas, sociedade civil, jornalistas, cidadãos e grandes plataformas, para esta emergência nacional.

Todos conhecemos o diagnóstico: a comunicação social é um setor em crise acentuada e prolongada, enfrentando graves problemas de sustentabilidade.

Neste contexto, as políticas públicas não podem ignorar as dificuldades de sobrevivência das empresas de comunicação, nem o crescente desemprego entre os jornalistas, sujeitos a salários indignos e vínculos precários.

Os média desempenham uma relevante função social de escrutínio e vigilância, com garantias de pluralismo e diversidade, rigor e isenção. A existência de uma imprensa livre e independente é a essência da democracia.

O setor nunca esteve tão frágil e tempos excecionais exigem medidas excecionais.

É imperioso debater o papel do Estado, discussão que não pode continuar refém de um passado de ditadura e censura. São outros os tempos e devemos refletir sobre isto de uma forma aberta e serena, sem tabus. E com a firme convicção de que o jornalismo é um bem público, quer seja prestado por públicos ou privados.

Os apoios do Estado são banais nos países nórdicos, em França, na Bélgica… o que essas experiências nos dizem, umas mais bem sucedidas do que outras, é que, independentemente do modelo escolhido, é possível, desde que haja critérios rigorosos e transparentes na aplicação desses apoios.

Sobre a atual intervenção do Estado, nomeadamente no que diz respeito ao serviço público de rádio e televisão e da única agência de notícias do país, importa assinalar que RTP e Lusa têm operado num cenário de contenção e desinvestimento, que passou pela redução das suas redes nacional e internacional, com impacto real no pluralismo e na diversidade da cobertura jornalística que hoje prestam.

É preciso reforçar o investimento no serviço público de qualidade e acabar com os inexplicáveis bloqueios à contratação de jornalistas em condições dignas, abrindo caminho à acumulação ilegal de precários.

O Estado pode fazer mais, nomeadamente:

– criar regras específicas de governança para um setor que não pode ser encarado como um mero negócio e continuar a ser prejudicado por má (e até dolosa) gestão;

– obrigar administradores e diretores de grupos de comunicação social a um escrutínio de independência, idoneidade e competência;

– dotar o regulador de meios para supervisionar a transparência dos negócios e fiscalizar a governança dos órgãos de informação, dando-lhe poderes efetivos para sancionar as empresas por violações das leis e dos princípios que regulam o exercício do jornalismo;

– distinguir órgãos de informação de órgãos de comunicação social (onde tem cabido tudo) e obrigar os primeiros a terem um conselho de redação e um provedor, cujas posições sejam tornadas públicas;

– reduzir impostos e aliviar os custos de produção e distribuição;

– repensar o porte pago para valores que permitam, realmente, ajudar à sustentabilidade da imprensa regional e local;

– aumentar os incentivos e os benefícios fiscais para as empresas de comunicação;

– obrigar as empresas de clipping a pagarem mais pela utilização de conteúdos jornalísticos e fiscalizar devidamente a sua atividade;

– em matéria de benefícios fiscais para os cidadãos, permitir deduções fiscais e, por exemplo, que estes consignem parte do seu IRS a um órgão de informação, como já fazem, tantas vezes, para outro tipo de organizações e associações;

– garantir que as escolas têm acesso gratuito a edições impressas e assinaturas digitais de órgãos de informação, generalizar a disciplina de literacia mediática a todos os níveis de ensino e continuar a investir em programas que a promovam;

– assegurar que todos os organismos públicos – nacionais, regionais e locais – disponibilizam edições impressas ou digitais nos espaços de atendimento ao público;

– assegurar que os transportes públicos disponibilizam o acesso a órgãos de informação;

– à semelhança do que já acontece em França, oferecer subscrições de órgãos de informação a cada jovem que entre na universidade.

Mas não é só ao Estado que cabe agir. É a democracia que está em causa, portanto estamos todos convocados:

– as empresas de comunicação social, muitas das quais com dimensão de grandes (e cada vez mais concentrados) grupos económicos, cujos modelos de gestão têm sucessivamente falhado, sem que daí se tenha retirado as devidas consequências. O esvaziamento de redações, negociando saídas de jornalistas experientes e contratando jovens com salários baixos e vínculos laborais frágeis, tem sido uma opção recorrente das empresas como medida compensatória para as perdas financeiras. A gestão, essa, segue impune, mesmo quando é, aos olhos de quem queira ver, danosa;

– a sociedade civil, quer as grandes fundações, que podem, por exemplo através da criação de bolsas, apoiar jornalistas e projetos independentes, quer as grandes empresas, que, no âmbito da responsabilidade social, podem devolver uma parte dos seus lucros ao desígnio de uma sociedade informada e esclarecida;

– os jornalistas, que têm de responder coletivamente a este estado de coisas, com melhor jornalismo, que escrutine e verifique;

– todos os cidadãos, que precisam de perceber quão importante é apoiarem o jornalismo credível, livre e independente, num contexto de desinformação como este em que vivemos, e decidir o que estão dispostos a fazer para continuar a usufruir dele.

– as grandes plataformas multinacionais, como a Google e a Meta, que têm de ser responsabilizadas pela utilização, em seu benefício, de conteúdo que não lhes pertence e pelo qual não pagam o devido valor, e também pela disseminação cega de conteúdos falsos que atacam diariamente o jornalismo. É fundamental obrigar fiscalmente os operadores internacionais, que têm escapado à tributação nacional.

Este é um assunto de emergência nacional. Está na altura de, juntos, salvarmos o Jornalismo. Sob pena de, dentro de pouco tempo, já não haver nada para salvar.