Miguel Carvalho: “Eles” estão no meio de nós
No momento mais frágil do jornalismo em Democracia, identificam-se ameaças ao ofício e ao próprio regime. No controlo dos “media” ganham protagonismo figuras duvidosas, com capitais não rastreáveis e interesses inconfessáveis. Com a nossa quota parte de anestesia, sobrevivência e ilusão, entraram-nos pelo teto e arrombaram o cofre onde julgávamos ter blindado o que restava de um jornalismo livre e íntegro. Como se chegou aqui, como sair daqui? Imprensa e República salvam-se ou caem juntas?
Contabilizo 34 anos de ofício e nunca o vi tão esmurrado. Enquanto alguns de nós parecem investidos de uma auréola de justiceiros para a qual ninguém lhes passou procuração, vemos a Imprensa frequentada por “homens de palha” e figuras de extração política, financeira e empresarial duvidosa, ao serviço de interesses inconfessáveis e pouco rastreáveis.
É de rir (para não chorar) ouvi-los jurar fidelidade ao jornalismo. Na verdade, o seu “negócio” é a domesticação deste ofício a bem dos amigos, da vidinha e do trabalho sujo sem escrutínios incómodos. São pantomineiros ilustres, empresários de “vão de escada”, doutores em artifícios fiscais e facilitadores encartados. Alguns vêm das assessorias políticas ou do lodo das campanhas eleitorais. E o seu poder na Imprensa até contou, por vezes, com a bênção das mais altas esferas da nação.
São velhos vampiros, “mordomos do universo todo, senhores à força, mandadores sem lei”, que Zeca Afonso cantou e a democracia reciclou. Chegaram onde chegaram com a nossa quota-parte de anestesia, indiferença e desunião. Iludidos ou submissos, estendemos passadeiras a excelentíssimas criaturas que, noutras épocas, nem se atreveriam a rondar as redações. Montou-se o cabaret, abriu-se a porta e não mais foi possível fechá-la. Por isso, algumas das ameaças ao jornalismo estão hoje em “casa”: no meio de nós, entre paredes, nos corredores e gabinetes VIP, mas debaixo do mesmo teto.
Novos “donos disto tudo” batem no peito pela democracia e as liberdades. Mas a palavra é moeda fraca, a unha pintada estala rápido. Na realidade, a retórica oculta o “território comanche”, onde vale tudo para colocar o jornalismo ao seu serviço ou a preço de saldo. As leis que conhecem são as dos acionistas e investidores, alguns tão fiáveis como um holograma.
Enquanto isso, a erosão de direitos é dramática.
Para muitos, neste ofício, o fim do ordenado chega antes do fim do mês. Que sapos têm de engolir, o que lhes podemos exigir para lá da exaustão? Que liberdade tem quem não recebe um salário decente ou não o recebe de todo? A geração tecnicamente mais preparada é – ironia! – precária, vulnerável e escravizada. E estudos recentes revelam, entre nós, índices de esgotamento superiores aos dos enfermeiros.
Redações esgotadas, a trabalhar no osso ou em “casos e casinhos” de registo justiceiro, são carne tenrinha para os populismos e a fervura da indiferença e do ressentimento. Reclama-se um jornalismo que se dê ao respeito e uma vigilância sem tréguas ao shark tank que tomou conta de certos grupos de comunicação social. Trazer decência, independência e valor a este meio é o primeiro passo para salvarmos o que ainda pode ser salvo. São urgentes investimentos transparentes, sérios e escrutináveis para combater interesses sombrios, a diluição de fronteiras entre conteúdos editoriais e comerciais, a ditadura do episódico e do imediatismo, a torrente de insanidade, o frenesim “salta-pocinhas” e o estrelato de patetas ilustrados.
Sangramos recursos humanos, técnicos e financeiros. Estamos a perder a batalha da credibilidade e contra todas as formas de exploração e segregação. Não duvidem: um jornalismo exaurido é um risco para a sobrevivência de uma cidadania crítica, exigente e participativa.
Há invisibilidades gritantes ao nosso lado e um interior atirado para o esquecimento, se excetuarmos as narrativas de faca e alguidar ou o postal ilustrado da evasão turística. No Continente e ilhas, camaradas amarrotados resistem à pressão extra dos meios pequenos e honram o ofício em insuportáveis circunstâncias de fragilidade. Pelo meio, enxotaram-se das redações experiências, saberes e práticas incómodas para as hierarquias, património humano desperdiçado com um cortejo de enxovalhos em nome do “novo”, do “giro” ou do que está a… “bombar”.
Entretanto, o Estado, a classe política e alguns de nós, desprezam ou ignoram a situação lastimável dos arquivos de Imprensa, as leis datadas que fazem com que parte da nossa memória coletiva se perca de vez. Sem memória não há futuro. Passe o exagero, o alarme é idêntico ao das alterações climáticas: mesmo que algo se faça, já vamos tarde.
Nos 50 anos da Democracia, é este jornalismo enfraquecido, humilhado e maltratado que, ainda assim, tenta cumprir Abril, mesmo quando Abril falha permanentemente aos deste ofício.
Discuta-se, pois, o financiamento público do jornalismo, enquanto bem de primeira necessidade, promova-se a literacia mediática sem limite de idade. O Estado e os seus gestores de turno vão fazer comunicados ou alguma coisa séria para equilibrar a mercantilização deste sector?
Será assim tão difícil criar mecanismos eficazes e independentes de fiscalização e transparência no acesso a apoios públicos? Ah, cuidado com a vertigem controladora e totalitária do Estado, advertem-nos… E a visão única de mercado não é totalitária? Reduzir o jornalismo a mercadoria não é totalitário?
Ouço dizer que somos um País de empreendedores e visionários. E incensamos unicórnios até se revelarem o que sempre foram: mitos. Mas será que o capitalismo nacional, por vezes tão venerado e idolatrado até acabar nos tribunais, não terá um punhado de personalidades íntegras e disponíveis para aplicar uma pequena parte das suas fortunas num bem público como a Imprensa, de forma sustentável, com economia de escala e visão global, e assim prestar um serviço à Democracia? Ou estes conceitos são-lhe estranhos? Noutras geografias, a filantropia, os apoios corporativos e individuais à Imprensa não se discutem. Mas certa elite nacional continua a preferir lucros de cartel e esquemas de merceeiro.
Aqui, ouso dizer, o 25 de Abril ainda não chegou. Mas o dilema dura há mais de um século. Foi identificado por Pulitzer, mantém atualidade e compromete-nos a todos. Que disse ele? A Imprensa e a República só têm uma de duas hipóteses: ou avançam juntas ou caem juntas.
Vamos mesmo ficar a ver?