José Manuel Mestre: Jornalismo, o que será de ti?

José Manuel Mestre: Jornalismo, o que será de ti?

Os tempos que vivemos desafiam as nossas forças, a nossa imaginação e a nossa coragem. Estamos numa encruzilhada onde é importante ter presente que o financiamento do jornalismo é obviamente causa mas também consequência. O momento é grave. Se queremos mesmo ser Jornalistas, se temos orgulho na profissão que escolhemos e não queremos ser cúmplices da morte do Jornalismo às nossas próprias mãos, temos de sair da zona de conforto, temos de ser capazes de dizer Não! de cada vez que um de nós cede, seja Camarada ou chefia. Sem Rigor, Responsabilidade e Independência não há futuro, nem Liberdade.

Já não adianta fazer de conta que não vemos. Chegou a hora de erguer a voz senão morremos. O medo não pode ser a nossa ferramenta de trabalho, ele será sempre o nosso cangalheiro.

Chegou a hora de lembrar os grandes jornalistas que tiveram de lidar com a censura e souberam encontrar formas de contornar o monstro, vencer o medo e dar as notícias que se queriam escondidas. E para eles não era apenas uma questão de sobrevivência, foi também de liberdade. Se nos distrairmos mais um bocadinho, voltarão de mãos dadas.

Independência e Liberdade como princípio

O óbvio: a crise de financiamento do jornalismo é terreno fértil para o condicionamento à liberdade de informar. O caminho: chegados aqui, é proibido hesitar.

Temos de saber dizer Não!, na hora, quando nos pedem que amachuquemos as mais elementares regras da profissão em nome da pressa, da economia de meios sem soluções alternativas, de interesses extra-jornalismo – incluindo a alegada sobrevivência do próprio jornalista ou do meio para que trabalha.

Temos de saber dizer Não!, seja quando o Camarada do lado sucumbe ao medo de perder o direito a uma vida digna, seja quando acima alguém troca a independência do estatuto editorial pelo populismo disfarçado de opinião, pelo facilitismo do desejado clique, da ambicionada audiência, do jeitinho ao acionista, ao anunciante ou a um qualquer grupo de interesses. Hoje todos conhecemos casos em que aceitar o inadmíssivel em nome do posto de trabalho não significou salvar o futuro mas apenas abreviar o caminho para o abismo– e entretanto, com a água do banho deitou-se fora também o bebé.

A independência, a liberdade e a credibilidade são bens maiores do Jornalista. Que tem de exercê-los a tempo inteiro. Sem cedências. Sempre! E se possível mais ainda quando o temporal ameaça todos os alicerces do edifício.

Ceder no Rigor e na Responsabilidade, prato que servimos todos os dias, é uma luz que se apaga na escuridão, o princípio do fim.

Novo modelo Financiamento como caminho

É possível ser livre e independente sem financiamento? A questão é desafiante, desarmante até, quase um enigma mas acaba sempre numa resposta única: sem Independência e sem Liberdade não há Jornalismo.

Como entendo que este ainda é um Congresso de Jornalistas que querem continuar a ser Jornalistas, o caminho parece-me claro: discuta-se o
financiamento que a essência não é discutível (quem acaso aqui estiver crente que esta pode ser uma profissão indiferenciada estará no Congresso errado).

Se é para continuarmos a ser Jornalistas temos OBRIGATORIAMENTE de procurar saídas. Desafiar a imaginação, ver o que está a ser feito noutros pontos do mundo, desafiar o Estado a reinventar-se e encontrar novas regras e novas leis consciente de que uma sociedade e uma democracia sem jornalismo estão definitivamente condenadas à escuridão (definitiva).

O único modelo viável que encontro para além dos (poucos) modelos de negócio que ainda continuam sustentáveis é aquele que se financia na própria sociedade e em instituições que não abdicam dum jornalismo livre, independente, responsável e rigoroso como ferramenta essencial à democracia e ao desenvolvimento da sociedade.

Temos lá fora novos modelos de financiamento com resultados encorajadores, com o Guardian à cabeça – é certo que a uma escala (número de consumidores potenciais) inacessível em Portugal onde as tentativas de crowdfunding não têm conseguido desempenhos alternativos ao mercado tradicional.

Pessoalmente, creio que num país com a dimensão portuguesa (nas suas diversas vertentes) os modelos que recorrem a contributos voluntários são insuficientes. Não sendo claramente um negócio capaz de remunerar acionistas – equívoco dos tempos atuais -, o futuro do jornalismo independente passa por soluções alternativas de financiamento sem o lucro como objetivo, isto é, sociedades de media sem fins lucrativos com origem na sociedade civil: cidadãos, empresas, instituições, universidades, associações públicas e privadas e outros. Inspiro-me em Júlia Cagé.

Soluções híbridas podem ser a porta de entrada para o futuro, modelos atuais complementados/cruzados com modelos de financiamento participativo, como o defendido por Julia Cagé (que recomenda um voucher atribuído pelo Estado a cada cidadão para financiar um órgão de comunicação social à sua escolha, com um limite máximo de financiamento por meio para travar macrocefalias) ou como o modelo que defendo: novas sociedades de media detidas pelos próprios cidadãos-consumidores, também abertas a organizações da sociedade civil, que subscreveriam nano-participações (com um limite máximo de ‘capital’ definido por Lei de forma a evitar o controlo do orgão de comunicação por grupos de interesse não jornalísticos) em troco do livre acesso aos conteúdos de media produzidos pelo meio de comunicação de que se tornariam acionistas/proprietários (“uma multiplicidade de agentes que financie coletivamente, a fim de promover a sua gestão democrática”, como defende Julia Cagé).

É essencial que este Congresso seja um ponto de partida para a discussão de caminhos. Defendo que seja constituída uma robusta comissão técnica que trabalhe todos os contributos para novos modelos de financiamento aqui aprovados e inicie diligências junto das autoridades públicas e da Assembleia da República para aprofundamento da viabilidade legislativa das diversas soluções tendo em vista a criação de ferramentas para enquadrar e estimular novas formas de investimento participativo em meios de comunicação (necessariamente com limites à concentração de capital para garantir a independência dos projetos). No final, deverá ser promovido um referendo a todos os jornalistas com carteira
profissional para aprovação das soluções técnicas encontradas para financiamento dos media.

Além de estimular um novo mercado de comunicação social, a nova legislação pode promover um novo boom nos media, como aconteceu com a abertura do espetro radioelétrico no final dos anos oitenta e que rasgou horizontes e conduziu ao aparecimento de meios tão relevantes como a TSF ou o Público. Mas onde, também, houve deficiências que aconselham a cuidados acrescidos para evitar lacunas legais como as que nesse processo levaram à rápida transformação da maioria dos novos projetos de rádio, uns sem redação e sem jornalistas outros meros retransmissores de meios já existentes.

Vamos, que se faz tarde!