Paula Sofia Luz: Os trabalhadores que (não) colaboram

Paula Sofia Luz: Os trabalhadores que (não) colaboram

Este é o meu terceiro congresso dos jornalistas, e paira no ar a ameaça de que pode ser o último.

Digo-o assim, sem qualquer intenção de vos parecer lamechas, mas antes para honrar o que me ensinou o meu primeiro formador no Cenjor: é preciso escrever aos murros. Talvez seja por aí que deva começar: nos últimos anos deixámos de escrever aos murros. Passávamos a ser fofinhos, primeiro com os leitores, depois com os editores, depois com os diretores, e até com os administradores – essas entidades celestiais que sobrevoam os jornais, as rádios, as televisões. Que pedem resultados, sob pena de não nos salvarmos. Perdão, de só eles se salvarem. E dizem-no do alto dos sobretudos caros, dos sapatos italianos, da viagem em classe executiva, do brunch no melhor rooftop da cidade. Como queres tu, mísero precário, compreender o sabor das ostras se nem ao peixe congelado consegues chegar?

Como queres tu, correspondente dessa cidade de província, fazer valer a importância de falar da tua terra e da tua gente, se não importa essa gente que comprava os jornais quando falavam da sua rua, do negócio ruinoso que a sua Câmara queria fazer, dos feitos heróicos dos que ficaram na cidade e nas serras, depois de todos terem partido para longe?
Talvez não saibas que isso de querer fazer jornalismo ‘fora dos grandes centros’, que em linguagem corrente quer dizer Lisboa, não te leva a lado nenhum. Porque não te contentas com o que é a realidade: uma amálgama de produção de conteúdos, que de vez em quando é abanada pelas tragédias dos fogos, no verão, pelos naufrágios no inverno, e não deixa espaço para essas coisas mundanas tão pouco atraentes. Tão pouco sexy, muito menos ‘reportageiras’.

E tu, que já não és correspondente de coisa nenhuma, não correspondes. Insistes em não-sei-quê da proximidade, sem perceberes que “não é isso que os leitores querem”.

O que querem eles, afinal? Alguém sabe? Alguém fala com eles e com elas? Não, porque não se pode lá ir. Lá, onde eles estão, é longe. E tu, que ainda tens o teu carro para te deslocar, não podes ir porque não há dinheiro para kms. Podias ir de boleia com o camarada fotógrafo, mas também não há dinheiro para fotógrafo. Não correspondes, lembras-te? Não ligas ao assessor de imprensa municipal – que já foi jornalista, mas agora trabalha num gabinete maior do que qualquer Redacção da zona – não lhe ligas a pedir uma fotografia para ilustrar o teu texto. Não colaboras. E logo tu, que és colaborador. Na boca de todos, é isso que tu és.

Só que na tua cabeça, no teu corpo e na tua alma, tu ainda és jornalista. Não, não és um tarefeiro que escreve a metro, como os têxteis da Covilhã. És aquele e aquela que teceu uma rede de contactos, e a quem ainda ligam a contar novidades. Ou a quem enviam posts das redes sociais a perguntar se já viste, se também sabes, se aquilo é verdade. E então, tu colaboras. Explicas que uma página numa rede social qualquer não é um órgão de informação. Que é preciso checar. Verificar se é verdadeiro ou falso. E vais propor ao editor.

Nesse meio tempo já um camarada de um jornal local te ligou, porque sufoca com os embustes; os embustes legitimados pelo poder local. Também aí, na imprensa regional, muitos não colaboram. Não entendem que o mundo seria um lugar sem chatices se também posassem para a fotografia ao lado dos vereadores e do presidente, se em vez de fazerem perguntas incómodas contribuíssem para um certo espírito de comunidade e território, alimentado a propaganda. Tudo amiguinho, como é bonito.

Quando foi que isto nos aconteceu? Quando foi que deixámos animadores e entertainers fazer de conta que são jornalistas, alimentando horas de rádio e páginas de jornal com comunicados de imprensa?

Eu sei. Sabemos todos. Foi quando legitimámos os equiparados. Quando permitimos, durante décadas, que a Comissão da Carteira Profissional fosse presidida por quem não é jornalista.
Mudámos isso. E ainda acredito que, se quisermos, podemos mudar o resto: filtrar quem se faz passar por nós. Garantir que a Entidade Reguladora regula alguma coisa. E se isto é um país, com um Estado de Direito , pensar e agir, de uma vez por todas, na forma de preservar e recuperar este legado da democracia.

Há sete anos aprovámos neste congresso um plano para a literacia dos media, que tem sido um êxito. Já não tivemos tanta sorte com a moção, também aprovada, que nos impelia, a todos, abandonar conferências de imprensa sem direito a perguntas. Isto quer dizer que, mais uma vez, somos tão bons a olhar pelos outros, mas vendamos os nossos olhos quando caminhamos para o abismo.

Camaradas,

O que me faz vir aqui, falar-vos destas inquietações, é o jornalismo em que ainda acredito.
Sou jornalista há mais de 30 anos, e toda a minha vida foi atravessada pela crise nos media. Não me recordo de um tempo de paz, de alguma margem para trabalhar com a serenidade que merecíamos.
Há questões que são transversais a todas as fases que atravessei.

Mas o que agora está a acontecer é algo de novo, que exige muito mais resistência. Mesmo que aos 50 anos tenhamos que fazer de conta que temos a força dos 20. Integro a fileira de trabalhadores a recibo verde, prestadores de serviços, colaboradores, da Global Media. Não vou falar-vos da ansiedade, da angústia de não receber a horas certas, do que é estar no fim da linha, mesmo fazendo primeiras páginas.

Vou falar-vos da importância de recuperarmos a dignidade, enquanto jornalistas freelancers, mesmo que precários.

Nas últimas semanas assistimos ao impensável: quando atingimos o nível zero (um natal sem um tostão para comprar uma posta de bacalhau ou um doce para os filhos, ou para muitos de nós, a medicação para os pais), assistimos a uma mobilização de classe, uma colecta entre centenas de jornalistas de todo o país. Isso fez-me acreditar que ainda somos capazes de nos unirmos, como dantes. Como quando o José Pedro Castanheira foi a Leiria, nos idos de 90, anunciar o III congresso, e esgotámos a sala de um restaurante ao jantar.
Foi o meu primeiro congresso. Ao lado da Ana Isabel Costa, do Carlos Camponez, do João Figueira, ou do Carlos Ferreira, assinei uma comunicação que se chamava “De Vila Franca de Xira a Vila Franca das Naves”, que falava sobre a importância da proximidade.
Há sete anos, nesta mesma sala, ao lado da Carina Fonseca, do Camilo Soldado, do João Gaspar e do Nelson Morais, já vos falei da precariedade, de como sobreviver ao fim das Redações.

O que hoje está em causa é a sobrevivência do jornalismo. E dos jornalistas.
E eu, que venho da era pré-mêmes, dos cartazes nas redações, e da esperança, estou ainda como aquele que pendurei por cima da minha primeira secretária, num jornal local que já não existe: não acredito em milagres, mas confio neles.

Este é o meu terceiro congresso, e não quero que seja o último.