Orlando César: Os jornalistas mentem?

Orlando César: Os jornalistas mentem?

“Os jornalistas mentem?” constituiu a pergunta de partida para abrir a discussão sobre o cumprimento ético-deontológico do trabalho produzido pelos jornalistas. A análise à produção informativa é campo fértil para abordar os modelos de cultura jornalística e a ideologia editorial dos meios. A experiência profissional, que no meu caso teve início em 1972, permite comparações sobre antes e depois de Abril. Quanto à pergunta, no tempo da ditadura havia jornalistas que mentiam, tal como há hoje.

Coloquei, durante uma década, a pergunta: “Os jornalistas mentem?” Fi-lo a estudantes da unidade curricular de Ética e Deontologia Profissional. Não era uma pergunta de retórica nem sequer uma provocação.

Era uma pergunta para encetar conversa sobre o estado deontológico do campo jornalístico, sobre a dicotomia entre mentira e verdade e sobre outros polos dialécticos que esclarecem o raciocínio. Era uma pergunta que se abria a muitas interrogações sobre o agir jornalístico, a conduta dos seus profissionais, as certezas e incertezas que os acompanham e a forma como lidam com a problemática e os seus actores.

Levava-lhes, além da teoria e códigos de conduta, a bagagem da minha experiência jornalística e do exercício de funções no Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas. Iniciei a carreira profissional em 1972, num semanário da imprensa regional, o Notícias da Amadora. Num tempo em que a qualidade de jornalista não era reconhecida aos profissionais desses meios. Num tempo em que a classe profissional não dispunha em Portugal de um código deontológico seu. Num tempo em que não havia liberdade e em que a Censura e a PIDE condicionavam e castigavam jornalistas e meios que ousavam confrontar a ditadura.

A circunstância não obstava a que jornalistas se regessem por princípios éticos e deontológicos. Aos mais velhos e resistentes, juntou-se uma nova geração, chegada à profissão na segunda metade da década de 60 do século passado. Conheciam os deveres da profissão, tinham formação política e estavam informados. Mas também comprometidos em exercer o direito de informar os leitores.

Trabalhei e aprendi com alguns deles e convivi com outros no Bairro Alto, nas deslocações às suas redacções, quando ia à censura levar ou levantar provas. A redacção do Notícias da Amadora era reduzida, mas contava com a colaboração de outros jornalistas da imprensa diária de Lisboa. O semanário proporcionava-lhes o acesso a um meio onde não havia restrições internas ao que se escrevia. Autonomia que não era concedida nas suas redacções.

Trabalhei ou convivi com muitos desses jornalistas, o que constituiu o início de uma aprendizagem para demarcar o que substantivamente importava à profissão e reflectir sobre outros fenómenos marcantes para uma opção de vida. Como a honestidade ou o rigor interpretativo, bem como a inserção do acontecido no seu contexto. Também era fundamental observar e ter lastro de experiências próprias e alheias, que contribuíssem para enformar a memória social e política.

Traduzia um andamento para destrinçar as culturas em que se organizam os modelos que dão diversidade ao jornalismo, assim como a ideologia profissional que os norteia e distingue. O Notícias da Amadora era um jornal de causas, sendo a primeira delas confrontar a ditadura fascista e, consequentemente, contribuir para a mudança social. A informação produzida era, em si mesmo, um facto social. O que motivava a acutilância feroz da Censura e PIDE. Uma vigilância constante exercida sobre o jornal, redacção, colaboradores, fontes e leitores activos. Ao visar os textos do semanário, os censores justificavam o corte por se tratarem de «leitores especiais».

O papel desempenhado pelo jornal foi considerado por Paquete de Oliveira em 1973 como um caso notável «da imprensa “de resistência”». Em 1988, o sociólogo também qualificou o Notícias da Amadora, entre outras publicações, como imprensa «de oposição». Meios que um ministro de Caetano qualificou como de «informação alternativa [que] tiveram um papel decisivo no desgaste do regime».

A linha editorial do Notícias da Amadora enquanto imprensa alternativa foi assumida em 1963 por Orlando Gonçalves. Radicava na ideologia editorial e em princípios ético-deontológicos que postulavam a informação como um direito humano, na linha do que preconizava a UNESCO. O jornal assumia-se como isento, mas não neutro. A objectividade não era tida como condição do sujeito. Constituía a circunstância que remetia para o objecto, os factos e a metodologia utilizada.

A resposta à pergunta inicial tem de ser concisa. Antes do 25 de Abril de 1974 como hoje, há jornalistas que mentem. Uns mentem inconscientemente ou por negligência, alguns mentem por convicção e outros há que mentem a pedido. A mentira apresenta-se sob muitas capas, desde a omissão à ausência de verificação, desde a criação de uma realidade ilusória à discriminação de actores sociais.
A organização dos media transformou-se a diversos níveis, nas últimas décadas, com impacto nas redacções e no seu funcionamento. Daí que seja ainda mais importante defender o jornalismo na sua função primordial, enquanto bem público que deve contribuir para o desenvolvimento de um pensamento crítico. A causa do jornalismo é o progresso e a democracia.

Por ser relativa a várias pessoas e dizer respeito a testemunhos e acontecimentos, a verdade de facto, como dizia a filósofa Hannah Arendt, «é política por natureza» e deve ser exacta. A mudança por melhores condições de exercício profissional e por um jornalismo de qualidade requer acção jornalística colectiva, defesa da deontologia nas redacções, como a Constituição consagra, e nunca abdicar da responsabilidade social perante os leitores.