Nuno Viegas: Proposta ao V Congresso pela anonimização de quem comete crimes ou é deles vítima 

Nuno Viegas: Proposta ao V Congresso pela anonimização de quem comete crimes ou é deles vítima 

Identificar pessoas acusadas e condenadas de praticar crimes prejudica a sua ressocialização, potencia a exclusão social e a reincidência. Identificar as vítimas de crimes viola a sua intimidade e perturbar a sua dor. Propõem-se que por regra não divulguemos informação que permita identificar quem comete crimes ou é deles vítima.

Em novembro passei uma tarde no Estabelecimento Prisional do Porto, a falar com reclusos sobre jornalismo e liberdade de expressão. Apostaram lá que a taxa de reencarceramento de quem estava preso em Custóias era de 6 em cada 10. 

Apontaram várias causas. Lá dentro, não há ferramentas nem método para reinserir ou ressocializar quem comete um crime. Cá fora faltam estruturas e gente para apoiar quem sai. Antes sequer da prisão, falta um combate sério às desigualdades, exclusão e dependências.

Venho falar-vos da parte que nos cabe deste número. Não ajuda, disseram-me, unânimes, serem queimados pela comunicação social, verem durante semanas – meses se o caso for chocante o suficiente – o seu nome, a sua cara, a rua onde moram, os sítios onde trabalharam, expostos nas capas de jornais, nas ondas de rádio e nos ecrãs de televisão. “Queimados” é a palavra deles para estes momentos em que calha um jornalista chegar aquele crime e as redações torna um evento pessoal, um evento comunitário, numa questão nacional

Há três anos que investigo o sistema prisional. Os reclusos com que falo descrevem um estigma que os persegue toda a vida. Um, que por vergonha pediu para falar sem dar o nome, disse que que dias depois de terminar a sua pena andava na rua e sentia que toda a gente o olhava, que toda a gente sabia que ele tinha saído da prisão. Outras pessoas que estiveram presas contam como pesquisam os seus nomes, ou os reconhecem da televisão, e recusam dar-lhes emprego, arrendar casa. Explicam como esta exposição encurta ainda mais as hipóteses de regressar à vida em liberdade, ajuda a confirmar sentimentos de abandono, de exclusão, a certeza de que não valem nada nem nada vale a pena, e os empurra (de mão dada com a pobreza) a cometer novos crimes, e a voltar para a prisão.

E é aí que nós pegamos no caso de novo, e noticiamos a sua reincidência. Fazemo-lo sabendo que potenciamos os crimes que buscam a notoriedade, que potenciamos o mimetismo. Que excluímos, muitas vezes, qualquer hipótese de nuance. E minamos as bases do nosso sistema penal, tornando uma condenação judicial uma pena mediática perpétua. Eu já o fiz demasiadas vezes.

Não tem de ser assim. Dou um só exemplo. Na Alemanha os guias deontológicos mandatam a anonimização das pessoas que cometem crimes. “No interesse da ressocialização”, estou a citar, “a publicação do nome e de fotografias das pessoas acusadas é, por regra, omitida.” Escrevem que “num estado baseado na legalidade democrática, o objetivo do jornalismo de justiça não pode ser punir socialmente os criminosos condenados.”

Começo por falar de quem comete crimes, pois creio ser a ideia mais desconfortável. Mas gostava de olhar com igual importância as vítimas. O nosso Código Deontológico já nos proibe duas coisas: identificar as vítimas de crimes sexuais e identificar menores vítimas de qualquer crime.

E, no entanto, legalmente publicamos as fotos de crianças mortas às mãos dos pais. A Comissão da Carteira Profissional do Jornalista defende, estou a citar, que “a reserva da intimidade [de uma menor] fica, infelizmente, prejudicada pelo seu falecimento”. Pois parece-me que a Comissão entende de forma fundamentalmente errada quer os direitos de personalidade, que não se esgotam com a morte, quer o princípio deontológico que instituímos. Diz a Comissão que ao morrer uma criança, volto a citar, “a gravidade do caso e o sentimento coletivo de repúdio e estupefação que o mesmo provocou permitem considerar existir um incontestável interesse público na clarificação de toda a situação.” E esse interesse público parece exigir que se saiba o nome e se veja a cara dos envolvidos.

Pois volto aos guias deontológicos alemães: “ao noticiar acidentes, crimes, investigações e julgamentos, os média não devem normalmente publicar palavras ou imagens que permitam identificar as vítimas ou os perpetradores.” E explicam “o direito do público a saber deve ser equilibrado com os direitos pessoais dos envolvidos. A necessidade de sensacionalismo, não pode justificar por si o direito a ser informado.” Só mais uma frase: “não é, por regra, necessário identificar a vítima para o público compreender melhor um crime ou acidente.”

Que efeito social tem a exploração destas imagens, que se algo potencia é apenas o ódio? É necessária a humanização das vítimas, dir-me-ão. Concordo. Mas que direito temos nós, jornalistas, de para sempre reduzir os mortos ao crime que os levou? Não creio que saia prejudicado o nosso trabalho, que seja menos humano, se tratarmos uma mulher morta pelo marido por um pseudónimo, se não quiserem os seus filhos ver o nome da mãe numa capa de jornal.

Diz o nosso código deontológico: “O jornalista deve proibir-se de humilhar as pessoas ou perturbar a sua dor”. Porque escrevemos isto? 

Proposta: 

– Que por regra não divulguemos informação que permita identificar quem comete crimes ou é deles vítima.

– Que seja permitida a identificação de quem comete crimes quando a própria pessoa escolha falar aos média; quando se trate de uma pessoa em fuga às autoridades, mas apenas a informação necessária à sua captura, nomeadamente nome, fotografia e paradeiro; quando o crime esteja ligado ao exercício de funções públicas, ou coloque em causa a capacidade de as desempenhar por titular ou candidato a cargo público; ou quando se trate de figura pública cujo crime contrarie a imagem que procura transmitir.

– Que seja permitida a identificação de vítimas de crimes quando a própria pessoa escolha falar aos média; quando em caso de morte, torne a família públicas as circunstâncias da morte; ou quando seja precisa à procura de pessoas desaparecidas, mas apenas a informação necessária à sua busca, nomeadamente nome, fotografia e paradeiro.

– Que se incumba o Sindicato dos Jornalistas de introduzir estas posições no Código Deontológico dos Jornalistas, e garantir o seu referendo.

– Que se defenda a introdução destas posições no Estatuto do Jornalista.

– E que se indique à Comissão da Carteira Profissional de Jornalista que apenas as exceções aqui elencadas constituem o “incontestável interesse público” já necessário pelo Estatuto do Jornalista para justificar a violação da reserva da intimidade.