Sofia Branco: Que jornalismo é este?
A situação dramática que ameaça e ataca o Jornalismo é séria e perigosa.
Reconhecendo isso, é preciso também olhar para dentro, para o Jornalismo que andamos a fazer e a oferecer. Não porque a culpa seja nossa, mas porque também temos responsabilidade no estado a que chegámos. Na convicção de que a autorregulação é fundamental e de que
o Jornalismo, para escrutinar, tem de se escrutinar também.
Os jornalistas vivem uma contradição entre a missão de “funcionário da humanidade” (termo emprestado de José Luís Garcia) e a situação real de
assalariado e não raras vezes precário, o que condiciona a sua independência e a sua autonomia.
O jornalismo proletarizou-se e precarizou-se.
E, como se isso não bastasse, também se descoletivizou e se desuniu, sindicalizando-se apenas em tempos de crise e abstendo-se do debate
público – porque os jornalistas não são notícia, não é? – e mesmo da função de informar sobre a comunicação social em Portugal – onde
andam as páginas de média de outros tempos, que cobertura e investigação temos feito, e com que profundidade, do que se passa no setor e, em concreto, dos protestos dos trabalhadores que o suportam?
Ao mesmo tempo, o jornalismo perdeu valor social e os jornalistas perderam o monopólio da verdade. Deixaram de ser os intermediários e mediadores em quem se confiava cegamente, os únicos com acesso às fontes.
O espaço comunicacional democratizou-se, com os cidadãos a fazerem dele uso direto.
Os jornalistas ainda não se adaptaram a esta já não tão nova realidade: ou continuam a viver na ilusão da sua importância, presos numa torre de
marfim, ou criaram uma dependência excessiva dos caprichos de um público que, na verdade, ninguém conhece muito bem, ao sabor de redes sociais controladas por plataformas multinacionais que ‘abutram’ o trabalho dos jornalistas e muitas vezes o deturpam.
Perante isto, o que andamos a oferecer?
Servimos a repetição e a imitação, correndo atrás dos mesmos e gritando que ‘a ou b já estão a dar’ ou que ‘os outros ainda estão em direto, por isso fica e enche chouriços, mesmo que não tenhas nada a acrescentar’;
Deixamo-nos dominar pelo direto, tão fácil e tão barato que dá milhões, mas exclui a mediação, fundamental sempre, mas mais ainda em tempos de extremismos e manipulação;
Servimos de correia de transmissão e caixa-de-ressonância para gente mal preparada e mal intencionada, para comentários sem fundamento, que
ocupam horas e horas do precioso tempo disponível para a informação, sem a qual não há sociedade esclarecida, dando de mão beijada espaço
que é de interesse público a gente que o usa para cavalgar carreiras políticas e económicas – com interesses particulares, portanto;
Reduzimos o contraditório a citar o a e depois o b e depois o c, lavando as mãos como Pilatos para não ir ao fundo do que dizem a e b e c;
Apoiamo-nos em aspas para reproduzir discurso de ódio – racista, misógino, homofóbico e discriminatório –, em vez de refletir sobre as
balizas que a ética admite para tratar diferente o que é diferente – porque o jornalismo não pode servir para humilhar e desumanizar pessoas;
Abdicamos cada vez mais do poder de escolher abordagens e de selecionar com diversidade as pessoas a quem damos voz.
E a quem damos voz? Peço emprestados uns versos à Cátia Mazari Oliveira (mais conhecida como A Garota Não):
A preta não entra
A baixa não entra
A velha não entra
A torta não entra
O Jornalismo pode – e deve – procurar outras fontes, para não se poder cantar “quanto talento gasto em vão”.
É preciso descolonizar o Jornalismo. As redações continuam, em larga medida, a serem sítios de gente branca, deixando de fora toda uma paleta de olhares que enriqueceriam as narrativas da atualidade. E as fontes são ainda muito unicolores, não representando a diversidade da sociedade
portuguesa.
E não venham com a desculpa de que não há, porque há, quer jornalistas, quer fontes, uns remetidos para os guetos dos canais temáticos e das
antenas específicas e as outras chamadas a comentar o racismo e apenas o racismo. E se poucos e poucas houvesse, então teríamos de ir mais além e perguntar porquê, porque esse é o papel do jornalismo.
A igualdade entre mulheres e homens também tem tardado a chegar ao Jornalismo. Evidentemente que tem havido evolução, mal seria. Mas,
ainda que hoje haja paridade no exercício (excluindo os cargos de chefia e liderança, evidentemente), estamos muito longe de conceder às mulheres o mesmo estatuto de sujeitos de notícia ou de fontes de informação. A desigualdade não é uma impressão, há números científicos que o
comprovam – a ação é que tarda.
Por fim, e podendo parecer contraditório, o Jornalismo nunca esteve tão perto do poder como hoje. É importante recuperar o conceito de poder –
seja o quarto poder, seja o contrapoder ou o poder somente –, essencial para se perceber onde é que o Jornalismo se situa hoje.
Generalizando (o que é sempre abusivo), como podemos retratar uma sociedade de forma equilibrada, plural e diversa, quando nos movemos
nos mesmos circuitos e convivemos dentro das mesmas bolhas de quem está no poder?
Houve uma aproximação ao poder e o jornalismo foi engolido por ele.
Hoje, o jornalismo é poder, do ponto de vista de quem o dirige, claro, e não do trabalhador assalariado. E quem o dirige, já sabemos, não quer
saber do Jornalismo propriamente.
O jornalismo distanciou-se dos cidadãos, cada vez mais descrentes e desconfiados da informação, e não está a fazer os esforços suficientes
para ir ao seu encontro.
É absolutamente fundamental separar o trigo do joio, algo que os jornalistas muitas vezes se abstêm de fazer, capturados por uma torcida
visão da camaradagem. Isso passa por apontar o dedo a quem viola o Código Deontológico, com isso prejudicando a credibilidade de toda uma classe cuja reputação se joga nessas linhas éticas. Em Portugal, há muito bom trigo, o problema é que também há joio e esse tem de começar a ser separado. Sem tabus.
Como vai ser, camaradas? É este o jornalismo que queremos?