Bernardo Emídio: Nem transparência nem independência

Bernardo Emídio: Nem transparência nem independência

“Entre a pressão do mercado e da tecnologia, a precariedade e os baixos salários, a pressão do efémero e do populismo, a comunicação inquinada das redes sociais… entre tudo isso e por causa disso, fomos assistindo, nestes últimos sete anos, à nossa própria irrelevância e ao, cada vez maior, deslaçamento da classe. O 5º Congresso não irá produzir nenhum milagre, certamente, mas o privilégio de nos olharmos de frente e de nos confrontarmos com os nossos próprios fracassos terá de produzir efeitos”.

Valho-me deste parágrafo retirado da página do Sindicato dos Jornalistas, no anúncio deste congresso, para introduzir o que nesta altura considero um dos problemas maiores da nossa classe que é ter deixado de reivindicar junto do poder central com a acutilância de outros tempos, com a solidariedade dos patrões da comunicação social, não só o cumprimento da lei como o dever de apoiarem os órgãos de comunicação social que fazem serviço público seja com muitos ou poucos jornalistas e, essencialmente, fora de Lisboa e do Porto, que o país não pode continuar a viver das notícias que correm entre o edifício da Assembleia da República e S. Bento.

Todos os jornalistas sabem que estamos a bater no fundo, mas até aqui chegarmos deixamos muito trabalho importante por fazer. Dou um exemplo que é de caras um assunto que jamais devia passar ao lado dos interesses da classe, e que passou despercebido sem que sobre ele se escrevesse uma linha, com excepção do jornal onde trabalho.

Os beneficiários de Fundos Europeus no âmbito do Portugal 2020 (2014-2020) não cumpriram a obrigação de publicar na imprensa local, regional e nacional, em suporte de papel ou digital, anúncios sobre os montantes recebidos.

Perante a contínua violação do nº 80 do Decreto-Lei nº 137/2014, de 12 de Setembro, que a isso obrigava, O MIRANTE reclamou junto da Provedora de Justiça, em Janeiro de 2021.

Na altura, segundo informação do Boletim Informativo dos Fundos da União Europeia referente a 31 de Março de 2020, já tinham sido aprovadas 50 mil candidaturas, no montante de 12 mil milhões de euros (47% do total), o que significava que, para além da violação do princípio da transparência, essencial na gestão de fundos europeus, tinham ficado por pagar mais de 15 milhões de euros em publicidade, aos jornais (contas feitas, com base em anúncios de 300 euros por cada publicação, valor baixo relativamente ao mercado, atendendo ao que muitos jornais praticam).

Para além do incumprimento da legislação pelas entidades públicas e privadas beneficiárias O MIRANTE dizia que, tão pouco – quanto era do conhecimento público – havia registo de controlo e fiscalização por parte das autoridades de gestão competentes para garantir o efectivo cumprimento desta obrigação legal ou de terem sido desencadeados por parte destas entidades quaisquer procedimentos administrativos tendentes à averiguação do cumprimento da obrigação legal de publicitação.

A resposta da Provedoria, em Abril desse ano (2021), chegou, pouco desenvolvida, contraditória e omissa quanto ao âmbito da queixa, onde era pedido, entre outras coisas que fosse recomendado ao Estado português, que corrigisse as omissões obrigando os beneficiários incumpridores do Portugal 2020 a fazer as publicações em falta, na medida em que aquela obrigação ainda podia ser cumprida. Era pedido ainda, que fosse mantida a obrigação legal de publicitação pelos beneficiários nos órgãos de imprensa local, regional e nacional, assim como o respectivo dever de fiscalização pelas Autoridades de Gestão na regulamentação dos próximos fundos, instrumentos e programas europeus, designadamente no “Portugal 2030”.

A Provedoria limitou-se a dar conhecimento a O MIRANTE das respostas que lhe tinham sido enviadas pela CCDRLVT relativas ao POR (Programa Operacional) Lisboa, que não engloba a maior parte dos concelhos abrangidos por O MIRANTE, informando que as entidades beneficiárias dos fundos naquela zona do país tinham gasto entre 2014 e 2020, pouco mais de seis mil euros (6.150,15 euros) e apenas em 2015, 2016 e 2018. E, perante a evidência da veracidade do conteúdo da queixa de O MIRANTE, dizia que não se justificava “prosseguir com a instrução do procedimento” e informava ter feito uma “chamada de atenção” àquela entidade para que fosse “promovida, sem excepções, a publicitação pelos canais adequados de todos os apoios financeiros atribuídos, com o objectivo de assegurar a necessária e cada vez mais desejável transparência na gestão, concessão e fiscalização de fundos públicos”. E garantia que ficaria atenta à evolução do assunto, não prescindindo de uma nova intervenção se se viesse a justificar.

Na prática, nem os beneficiários foram obrigados a rectificar a ilegalidade; nem as entidades fiscalizaram o que deviam fiscalizar. Entretanto o Governo acabou com a obrigatoriedade da divulgação das candidaturas aprovadas, passando as mesmas a ser publicadas (artº 39º do Decreto-Lei 5/2023) apenas no site do Portal dos Fundos Europeus e no Portal Mais Transparência e apenas três vezes ao ano.

 

O artigo 80 do Decreto-Lei nº 137/2014, de 12 de Setembro, pretendia criar maior transparência e controle sobre a aplicação de fundos europeus através da obrigação de publicitação das operações aprovadas.

Ao mesmo tempo, com a cobrança dos anúncios, garantia ser possível contribuir para a sustentabilidade e independência dos jornais e rádios já que para informar os cidadãos e, desta feita, controlar o poder político e a actividade administrativa era necessário que tivessem não apenas recursos, mas também técnicos e jornalistas a quem pudessem remunerar de forma justa.

Como o legalmente estabelecido não foi cumprido, quem perdeu foi a transparência na utilização dos fundos e a independência e capacidade dos jornais para dar a informação.

Espero que este exemplo sirva como reflexão para o congresso de jornalistas porque a responsabilidade de estarmos a bater no fundo não pode ser só dos governantes que esfregam as mãos por o sector estar a definhar nem dos empresários que compram os jornais para depois os reduzirem a folhas de couve.