João Rosário: A lente com que vemos o “outro”

João Rosário: A lente com que vemos o “outro”

Mais de 40 anos de migrações de várias regiões do mundo levam a uma realidade de novos portugueses de várias cores e origens nos infantários, escolas, não lojas e nas ruas que não se reflete nas TVs, nos jornais, nas rádios. Não só são retratados como imigrantes, mesmo tendo nacionalidade portuguesa, como são notícia quando o tema é o crime ou a marginalidade. São áreas da informação que partilham com os portugueses ciganos. Qual é a responsabilidade dos jornalistas na perpetuação de estereótipos sobre estas pessoas?

Recentemente vi-me numa posição que me colocou uma perspetiva singular que, acredito, outro jornalista nascido em Portugal, com ascendentes portugueses brancos, não iria encontrar. Como membro da Direção do Sindicato dos Jornalistas, coube-me entregar um prémio a um jornalista nascido no Brasil. E o sítio onde isso aconteceu foi no município mais africano de Portugal, a Amadora.

Essa singularidade faz-me pensar sobre como a história de Portugal é ensinada nas escolas desde cedo sob a mesma lupa ideológica inventada no Estado Novo, no séc. XX, e herdeira do declínio do império registado no séc. XIX.

Conta-se às crianças nas sala de aula em modo de giesta gloriosa, a abertura a novos mundos, a novos povos, a um novo paradigma para o comércio marítimo, as invenções extraordinárias e os feitos de homens também extraordinários, fossem reis, navegadores ou exploradores.

Somos todos conscientes de que se conta uma parte da história: aquela que dominou. Os dominados ainda apenas personagens secundárias do que é apresentado como cinco séculos de glória.

O que têm estas evidências a ver com o jornalismo? Estamos aqui preocupados – legitimamente – com os baixos salários, a precariedade, um mercado que encolhe, com cada vez menos oportunidades para novos e para aqueles que já cá andam há anos na profissão. Todos procuramos saídas e soluções para melhorar as suas vidas e serem felizes no trabalho que escolheram ou que lhes calhou em sorte.

Na família e na escola, nos nossos anos de infância, juntamo-nos à nossa base coletiva, cultural, que nos define como uma nação, um povo com uma identidade.

Essa construção é ainda hoje, em parte, resultado de uma ideologia que tem como uma das suas criações mais duradouras o lusotropicalismo. Debaixo dessa criação projetou-se a ideia do bom colonialista. E essa ideia perdurou apesar de se celebrar este ano os 50 anos sobre o fim do regime colonial.

Nunca ter havido o reconhecimento neste país de que o colonialismo dos portugueses foi tão brutal e segregador como o de outros países europeus fez crescer o mito de que este povo não foi e não é racista.

E é neste ponto que, parece-me, nós jornalistas temos de olhar para o modo como concebemos a identidade “portuguesa”, como mentalmente imaginamos um ou uma portuguesa, individualmente ou em família, como achamos que são as casas onde os portugueses vivem.

Este é o tipo de pensamento pré conceito que exclui e separa.

Assisto nas histórias que contamos que na representação do que é ser português/sa não cabem os ciganos, os afrodescendentes, os asiodescendentes os descendentes de outras origens de migração. São retratados como imigrantes , confundindo a sua experiência de portugueses com a experiência dos seus ascendentes.

Não só as suas estórias são isoladas do que é concedido como “vivência portuguesa” como são colocadas em áreas percecionadas pela generalidade da população que consome informação como de marginalidade ou insegurança. Esta classificação perpetua mitos, desumaniza comunidades e justifica que sejamos testemunhas complacentes durante o exercício da profissão, com atos violentos – por exemplo dos agentes das forças de segurança, ou o discurso de ódio – sobre pessoas que não consideramos portugueses.

O mesmo processo de isolamento da comunidade idealizada faz-me pensar que é por isso que não há especialistas, comentadores ou analistas nos órgãos de comunicação que representem a diversidade que o país acomoda atualmente. E isso é uma perda para todos nós.

Num encontro de jornalistas com a importância que tem este Congresso acredito que faz sentido trazer estas reflexões, que não serão certamente apenas minhas, e partilhá-las com mais camaradas para que as nossas estórias sejam sobre pessoas de facto e não sobre representações construídas a partir de uma ideologia do passado que não reconhece a riqueza que o país ganhou, pelo menos desde há 50 anos.

Obrigado.