Aline Flor ‘et al.’: Não há democracia – nem jornalismo – sem igualdade
Disparidade salarial, desequilíbrio em cargos de chefia, feminização da precariedade (em particular entre jovens), assédio e outras formas de violência, o impacto das crises – é urgente denunciar as desigualdades de género nas redações, mas também olhar para as suas causas. Esta dimensão deve ser considerada nas decisões que digam respeito à profissão, garantindo representação equilibrada e recolha de dados para tornar visíveis as desigualdades.
Somos um grupo de mulheres jornalistas atentas às desigualdades de género que sentimos na nossa atividade profissional e às que observamos na sociedade em geral. Hoje, 42% de jornalistas com carteira profissional são mulheres. Se olharmos apenas para as gerações mais jovens, até aos 40 anos, elas já constituem mais de metade da classe (56,3%).
A feminização do nosso setor é acompanhada por uma outra tendência: a precarização das condições de trabalho e a queda dos salários. As redações encaixam na tendência dos pink collar jobs: quando as mulheres são a maioria das pessoas que trabalham numa área, o salário tende a desvalorizar. Vários outros fatores contribuem para a erosão dos direitos laborais, mas é importante reconhecer que esta relação existe. Veja-se o exemplo da Agência Lusa, onde as mulheres recebem menos do que os homens em praticamente todos os patamares, seja por idade, antiguidade na instituição ou nível de formação, de acordo com o relatório de diagnóstico de remunerações publicado em 2019.
É urgente denunciar a desigualdade salarial nas nossas redações, mas também olhar para as suas causas. Acreditamos que esta disparidade não resulta, necessariamente, de uma decisão deliberada: já não ouvimos que “esta mulher que faz o mesmo que este homem, só por ser mulher, vai ganhar menos”. A desigualdade é, acima de tudo, semeada em decisões pontuais – quando é decidido o que se ganha à entrada, quando há oportunidade para um aumento, quando há lugar para uma promoção – que são tomadas sem olhar de forma estruturada para as disparidades que se vão construindo nas equipas.
Não havendo uma preocupação para olhar estruturalmente para as desigualdades dentro de uma redação, estas perpetuam-se. Os dados de um estudo do ISCTE em colaboração com o Sindicato de Jornalistas, que inquiriu mais de 1400 jornalistas em 2016, mostrou que “as mulheres têm mais educação, trabalham mais horas, são menos de metade em posições de chefia e liderança, são menos de metade nos salários acima dos 2000 euros, e estão menos satisfeitas com a profissão”. Entre diretores e diretoras dos principais órgãos de comunicação e agências do país, o teto de vidro é evidente: as mulheres nos cargos de direção contam-se pelos dedos de uma mão.
Outras questões quotidianas das nossas redações têm também que ser olhadas com uma perspetiva do género. Com o encolhimento das redações e o aumento da carga de trabalho e do ritmo de produção, a dificuldade de conciliação da vida profissional e pessoal afeta de forma desproporcional as mulheres, sobre quem ainda recaem tendencialmente mais responsabilidades domésticas e de cuidado. Episódios de assédio e violência de género em contexto laboral, dentro e fora das redações, ainda estão por desocultar. Dimensões como orientação sexual e identidade de género, idade, nacionalidade, pertença étnica ou origem social cruzam-se com as discriminações de género, resultando em redações pouco diversas e conteúdos noticiosos que continuam a não refletir a diversidade das nossas sociedades. Não há democracia sem igualdade, e também não haverá jornalismo sem que a igualdade esteja garantida.
Também o impacto da pandemia foi maior sobre as mulheres – incluindo, claro, mulheres jornalistas, como mostrou um inquérito feito pela Federação Internacional de Jornalistas (estão ainda por conhecer dados concretos sobre os efeitos da pandemia e potenciais disparidades de género sobre as mulheres jornalistas em Portugal). E as adversidades que as mulheres enfrentam habitualmente no mercado de trabalho tornam-se ainda mais drásticas e profundas em contextos especialmente precários como o que se regista na Global Media Group.
É preciso que este assunto esteja no topo da agenda não apenas das redações, mas também das entidades representativas e reguladoras, mais bem posicionadas para a recolha de dados e a tomada de posições políticas sobre as condições de trabalho das jornalistas portuguesas.
Propomos:
- a inclusão das dimensões de género em todas as matérias tratadas, garantindo que as mulheres jornalistas estão representadas de forma equilibrada nos grupos de trabalho e fóruns de debate sobre a profissão, que o conhecimento que existe sobre estas desigualdades é integrado nas discussões sem simplificações nem condescendência, e que a luta por igualdade seja não apenas uma causa de algumas, mas de todas as pessoas que exercem a profissão;
- a promoção da transparência salarial nas redações, tornando as disparidades mais visíveis e proporcionando um debate mais informado sobre as suas causas;
- a criação de um grupo de trabalho sobre igualdade de género na profissão, que faça uma recolha e desagregação de dados e o planeamento de ações concretas em matérias como a desigualdade salarial, o desequilíbrio de género nos cargos de chefia e decisão, a feminização da precariedade (em particular entre jovens jornalistas), o assédio e outras formas de violência sofridas em contexto laboral, a segregação horizontal que condiciona oportunidades de homens e mulheres em determinadas secções e o impacto das crises nestas desigualdades;
- a organização de um evento público de apresentação dos dados recolhidos e questões analisadas pelo grupo de trabalho, que poderá ser uma conferência ou mesmo o tema de um eventual próximo congresso de jornalistas, e a divulgação dos mesmos juntos dos cursos de jornalismo;
- um debate sobre uma eventual adesão à Greve Feminista Internacional, no dia 8 de Março, uma iniciativa à qual jornalistas de países como Espanha também se juntaram para reivindicar mais igualdade.
Estaremos sempre disponíveis para participar nesses fóruns e apoiar as atividades que se entenda serem adequadas.
As subscritoras,
Aline Flor
Ana Bacelar Begonha
Ana Cristina Pereira
Carolina Amado
Catarina Ferreira
Karla Pequenino
Margarida David Cardoso
Mariana Duarte
Mariana Marques Tiago
Marta Leite Ferreira
Rafaela Burd Relvas
Renata Monteiro
Rita Salcedas
Sara de Melo Rocha
Sofia Branco
Teresa Abecasis
Vanessa Ribeiro Rodrigues
Vânia Maia