João Duarte Fernandes Soares: Maiores e vacinados?

João Duarte Fernandes Soares: Maiores e vacinados?

Uma incursão pela história do Jornalismo, com foco na TSF.

Aproveitemos então a data singular dos 50 anos para dar uma piscadela ao percurso do Jornalismo em Portugal…

Interroguemo-nos sobre o que nos aconteceu, o que nos fizeram ou, de uma maneira mais simples e verdadeira: porque permitimos que nos fizessem o que aconteceu, se é que “aconteceu” alguma coisa?

Falamos do Jornalismo, da nossa profissão, quase sem dar conta de que não há Jornalismo sem Jornalistas, habituados que estamos a olhar o mundo, a relatá-lo com factos, buscando explicações, perspetivando desenvolvimentos, (quase) sempre com base nos factos, na ciência e nas regras da profissão, esquecendo-nos de nós… do que nos fazem ou fizeram, do que nos exigem, com razão, os cidadãos porque, sem o Jornalismo, o mundo é um sítio obscuro, negro, inculto, caótico…

E, coincidência ou não, talvez apenas curiosidade… o mundo parece estar um pouco obscuro, cinzento, baralhado, titubeante…

Será que o Jornalismo?… ou será que, afinal, o Jornalismo não tem quem cuide dele? Quem cuida do Jornalismo se não são os Jornalistas a cuidar de si próprios?

Esta abordagem que nos propomos fazer em breve síntese é sobre o futuro, os próximos cinquenta anos que vamos construir com base no presente, no que temos, no que somos, no que nos propomos fazer em defesa do Jornalismo, da nossa Dignidade e Responsabilidade perante todos os que procuram factos, explicações, perspetivas e depositam no Jornalismo a confiança de que já fomos credores em maior escala.

É esse o sentido da proposta que, autonomamente, colocamos à consideração do Congresso.

Olhemos para o sítio de onde vimos. Nascemos ou renascemos com o 25 de Abril de 74, com roturas e convulsões, espontâneas ou provocadas primeiro e, a partir de Março de 75, com nacionalizações de parte da imprensa escrita por iniciativa do poder político (DN, JN…) numa espécie de “purificação necessária”, genericamente aceite pela sociedade.

A convulsão político-militar de 25 de Novembro desse mesmo ano, dá início à intervenção intencional, dolosa, musculada e determinada, do poder político (e económico) de controlo dos media em geral, com intromissões e ofensas ao Jornalismo, seu principal desígnio, permitindo ao PS e ao PSD apossar-se do seu controlo, com efeitos devastadores na qualidade dos produtos, dos profissionais, das suas organizações públicas ou privadas, numa continuada degradação que continua no tempo presente, sob outras vestes, sem proveito especial para as suas causas políticas.

Não, o Jornalismo não tem um problema porque as redes sociais… nem terá, já agora, um novo problema com a inteligência artificial. Não! Os Jornalistas têm um problema porque não tomam nas suas mãos a responsabilidade de garantir as condições, as regras que determinam a independência, autonomia, a ética, dignidade e seriedade do Jornalismo.

Por ser um tema que conheço mais ou menos, sigo a linha do tempo da TSF, a sua sorte e azar, o seu assassinato “in ovo”, a sua sobrevivência digna durante dezenas de anos, apesar dos maus tratos a que foi sujeita.

Nos primeiros dias de Janeiro de 1980, o governo da AD de Sá Carneiro toma posse. Vinha com a força de uma vitória eleitoral histórica e muito zangado com a invasão do Afeganistão pela União Soviética uma semana antes, a ponto de alguns setores sociais, talvez por graça, temerem que Portugal estivesse à beira de quebrar as fronteiras da Ucrânia em direção a Moscovo… Mas não…

Desviaram essa bravura para fazer desembarcar na então RDP, hordas de comissários políticos, aguerridos uns, tímidos outros, incompetentes e/ou analfabetos em geral, instalando uma nova administração, uma nova ordem jornalística ao seu gosto e feitio, modelo que replicou na RTP, na Comercial e nos jornais nacionalizados… na Anop… coisa musculada, diferente do PS que tinha já feito o mesmo, mansamente, nomeando administração, diretores, chefias, afastando Jornalistas dignos, colocando-os em prateleiras, prática que viriam a manter, de forma agravada, por mais de vinte anos.

É por esses dias que nasce a TSF, uma ideia, um projeto, sem nome, morada ou capital, mas um propósito, um caminho… tendo por único ativo um grupo de 15 Jornalistas e Técnicos, quase todos quadros da RDP, poderoso e capaz de impor um projeto de Jornalistas, atrativo, sério, digno, inovador e competitivo.

É uma gestação lenta saída das experiências vividas desde a nacionalização das rádios em 2 de Dezembro de 1975 pela mão de Almeida Santos (VI governo provisório) que define os termos da nacionalização e deixa o seu pensamento político no preâmbulo do dec lei 647-C/75, depois de retirar a Rádio Renascença do pacote, por sugestão do seu gerente, Magalhães Crespo, invocando a concordata. A. Santos prosseguirá a consolidação do seu projeto no I governo Constitucional com Estatutos, Administrações, Direções, e controleiros do partido, até à queda do governo em 1979 para dar lugar à AD.

Por essa altura, não havia acesso à utilização de frequências de radiodifusão, embora Portugal já tivesse disponíveis 3 redes nacionais em MF (Modulação de Frequência) ou FM, atribuídas pela UER/UIT, não havia legislação que regulasse o acesso, o que não impediu, no verão de 1980, por despacho conjunto dos ministros da defesa e das comunicações (Adelino Amaro da Costa e Viana Batista) a atribuição de uma frequência MF/FM às forças armadas americanas, presentes no Comiberlant em Oeiras.

A TSF – Cooperativa de Profissionais de Rádio, CRL é formalmente constituída em Março de 1981, inaugura os primeiros estúdios em Março de 1982, apresenta o primeiro requerimento para a concessão de uma rede nacional em MF/FM e outra em OM (Onda Média).

A apresentação das suas pretensões junto dos partidos políticos, organizações sociais, media… A proposta de uma Lei da Rádio a pedido do deputado eng Lopes Cardoso (UEDS, coligado ao PS); a crescente curiosidade social e dos media… começa a inquietar partidos ligados ao poder (PS e PSD) que passam a atuar informalmente coligados.

A 17 de Junho de 1984 (um domingo de manhã) a TSF faz uma emissão de 4 horas, pré-anunciada e publicitada, com representantes dos órgãos de soberania, partidos políticos (incluindo os que conspiram na sombra), organizações sociais de diferente natureza, personalidades com reconhecimento social…

Por questões de segurança, são utilizados dois emissores, um no Lumiar (Lisboa) outro na Caparica (Almada). São tomadas providências para impedir o acesso dos serviços radio elétricos aos equipamentos, por não lhes ser possível ter o competente mandato judicial.

No dia seguinte, segunda feira, o Secretário de Estado das Comunicações, Raul Junqueiro, acusa a TSF de ter posto em perigo a navegação aérea, interferindo com as comunicações do aeroporto de Lisboa. No mesmo dia a TSF acusa a RDP e o Secretário de Estado das Comunicações de terem mandado montar, no edifício administrativo da RDP nas Amoreiras, equipamentos destinados e orientados para interferir com o Lumiar, causando distúrbios no aeroporto de Lisboa, mesmo na linha Amoreiras-Lumiar, utilizando para o efeito a missa que a Renascença estava a transmitir.

Em Outubro de 1985, a três dias das eleições legislativas, Almeida Santos, através do seu secretário de estado Anselmo Rodrigues, oferece, a requerimento da RR e entrega à RDP, a pedido desta, duas das três frequências nacionais disponíveis. A RR constrói um novo canal, a RFM, a RDP, sem saber que fazer, utiliza as frequências isoladamente e cria a RDP Bragança,… RDP Viseu… RDP Faro… espatifando recursos que não tem. Mais tarde virá a desmantelar a obra e inventar a Antena 3.

As novas eleições de 6 de Outubro de 1985 inauguram o reinado de Cavaco Silva e, especialmente, de Marques Mendes, personagem central na execução do plano relativo aos media. Está presente em todos os governos, com as mais diferentes designações ou mutações, mas sempre junto à presidência do Conselho de Ministros e/ou assuntos parlamentares e o mais metódico e exigente executor do plano para os media.

Começa por controlar com rédea curta a RDP e RTP, as suas administrações e Direções (especialmente a Informação); prepara a legislação relativa às rádios e elimina a terceira rede nacional de MF/FM, partindo-a em duas, norte e sul, uma pura manobra para espatifar recursos e satisfazer clientelas, como virá a suceder; prepara a privatização do Jornal de Notícias e do Diário de Notícias; promove o concurso público para as rádios locais, beneficiando o Correio da Manhã em Lisboa em prejuízo da TSF; repetindo o esquema pouco depois, no concurso para atribuição das frequências de rádio norte e sul, oferecendo o norte ao coronel Luis Silva e o Sul… ao Correio da Manhã, que adicionalmente virá a receber a Rádio Comercial (ex-Rádio Clube Português), privatizada pela RDP. Ainda terá tempo e influência para atribuir algumas concessões de cabo ao coronel Luis Silva que lhe servirá apenas para realizar capital. Nem um metro de cabo implantou, como se sabia e estava previsto. Finalmente, o concurso para as Tv’s privadas revelou-se um pró-forma desnecessário, um canal para Balsemão, um bálsamo para a Igreja. Conformados com o
cavaquismo, o país disse que nim…

Este não é o lugar para descrever a enorme teia de transações, venda de ativos, negócios e negociatas, troca de participações que o plano Mendes proporcionou aos seus beneficiários a que se atrelam as anónimas participações sociais de paraísos fiscais nos media, com as
consequências que, hoje, a sociedade começa a dar conta.

Em toda esta tragédia o Jornalismo ficou longe, de fora… e se alguns factos anotou ou publicou, falhou o contexto, o enquadramento, desvalorizando o impacto de cada caso ou a visão global das consequências para os cidadãos, a sociedade, a Democracia ou o Jornalismo.

Volto à TSF para registar que, quando nasceu no berço de Marques Mendes, a TSF era um projeto economicamente inviável. Qualquer media de qualquer natureza é particularmente pesado economicamente se o core for a informação, o Jornalismo – o mais caro produto de media, por definição. A sua viabilidade está muito ligada à qualidade e formação dos quadros, à tecnologia, à inovação e credibilidade do produto final, aliada à dimensão do mercado, em razão do território de cobertura, de população existente e da qualidade e quantidade de públicos que capta.

A TSF tinha tudo para dar certo mas não teve oportunidade de o executar. Tinha e teve o melhor curso de formação de jornalistas que se fez em Portugal. As circunstâncias eram favoráveis porque desde o inicio os formandos já tinham passado pelo crivo exigente de seleção, a sua colocação profissional assegurada, o produto final definido e uma direção de formação de primeira linha – Adelino Gomes e Teresa Moutinho, mais tarde Sena Santos.

Sabíamos que a erosão de quadros seria agressiva dada a qualidade do “produto” pelo que a solução estava num mix de retenção e novas formações, de modo a arrefecer os custos de produção.

As circunstâncias não permitiram essa evolução natural, primeiro pelo assassinato político do projeto (a sua resiliência, ainda que fragilizada, vive até hoje e ultrapassa o imaginável quanto à resiliência e qualidade iniciais estimadas). Depois, por erros de composição da estrutura acionista em diferentes aspetos e, finalmente, a crise interna na TSF (Cooperativa) que, não se tendo cruzado com a gestão corrente da rádio, é verdade, impediu que a Cooperativa, sua fundadora e acionista maioritária, pudesse ter reagido, como era sua natureza, aos abusos do poder político.

Ainda assim, por duas vezes, a direção de direito, da TSF, Cooperativa, tentou resgatar as condições objetivas que permitissem a sobrevivência económica do projeto: primeiro, através da ‘Rádio Colina’, concorrendo às frequências da regional sul com Joaquim Letria, Jaime Antunes e Sena Santos, numa corrida de novo viciada e indigna, com um ”vencedor” programado, tal como a norte. Depois, em 1995, com Graça Bau, Presidente da TV Cabo, procurando condições de acesso favoráveis a um canal que servisse o projeto da TSF.

Com Almeida Santos e Marques Mendes fora de cena, sobraram as mazelas das suas ações irresponsáveis. Não se sabe, não se entende, o que quis o PS ou o PSD com este pendor controleiro, sendo evidentes os danos de muito longo prazo causados ao Jornalismo, à Sociedade, à Democracia e aos próprios, sem que se note sinais de que tenham aprendido alguma coisa.

Todavia, no rescaldo,

– ficou a consolidação de um status adquirido por dezenas de “comissários políticos” tornados jornalistas que apenas contribuíram para a deterioração da qualidade das redações, da cultura profissional isenta e independente e a eternização de chefes e chefias incompetentes, muitas vezes promovidos a “assessores” à velocidade das rotações governamentais, outras vezes tornados placebos permanentes para todo o serviço
encomendado por administradores, diretores, ou patrões, infestando ainda hoje algumas redações ou direções .

– deixaram dezenas… centenas… de jornalistas por dias… semanas… anos… marginalizados, prejudicados nas suas carreiras e remunerações, arrumados em prateleiras humilhantes. Alguns cederam, acomodaram-se, indiferentes… A maior parte resistiu de diferentes formas
e feitios ante o bulying continuado e persecutório perante a indiferença de órgãos públicos, designadamente, governamentais, parlamentares ou judiciais que, evidentemente, manifestam religioso respeito pela independência dos OCS e dos jornalistas.

– ressalvam-se algumas, várias, exceções de camaradas Jornalistas que, tendo acedido através do comissariado político, se revelaram profissionais de elevada capacidade e isenção.

O assalto ao domínio dos OCS é substituído em 2005 pelo controlo da ERC acordado pelo PS e PSD, novamente com a liderança de Marques Mendes – entre 2002 e 2004, como Ministro dos Assuntos Parlamentares de Durão Barroso e, depois, como Presidente do PSD.

Longo é, foi, o caminho do Jornalismo nestes 50 anos. E os jornalistas? Que andaram a fazer? Que pretendem dos próximos 50 anos?

Mais do mesmo?