Martins Morim: Desabafos de um jornalista reformado, desencantado, mas não resignado

Martins Morim: Desabafos de um jornalista reformado, desencantado, mas não resignado

Falo de desencanto ao fim de quase 48 anos de actividade profissional, mas não gostaria que os meus desabafos fossem interpretados como resignação. Antes como alerta e motivos de reflexão sobre o estado do jornalismo em Portugal. Acredito que o jornalismo, enquanto profissão balizada por regras éticas e deontológicas e com responsabilidade social, não vai acabar. Mas, se nada for feito, então sim, acredito que vai ter o seu fim. Será qualquer outra coisa, mas jornalismo não, seguramente. Creio ser urgente e necessário ter sempre presente que aquilo de que mais precisamos não é o artifício e a futilidade, mas a Informação feita com rigor e sem submissão de qualquer espécie ao preconceito e à arrogância. Como diz o lema do congresso, Jornalismo, sempre!

O 25 de Abril permitiu-nos alcançar conquistas importantes como a legislação que veio reconhecer a dignidade da profissão, consagrar o Estatuto do Jornalista e dotá-lo de mecanismos legais de protecção em todos os domínios, da independência editorial à remuneração digna. Ainda festejei algumas das conquistas da Revolução, mas, entre Outubro de 1975 e Outubro de 1984, vivi no estrangeiro. Quando regressei, já havia estruturas representativas como conselhos de redação, delegados sindicais e comissões de trabalhadores, órgãos em funcionamento, respeitados, e com funções e poderes reconhecidos em lei. Também já se ganhava melhor e até já tínhamos carteira profissional. Não quero pintar um quadro idílico e muito menos cair num saudosismo bacoco, como se nós, os mais velhos, tivéssemos feito tudo bem; como se fossemos os campeões da liberdade e do combate e os que se nos seguiram gente acomodada, sem preocupações éticas nem deontológicas, sem brio nem dignidade.

Dos meus primeiros tempos após o regresso a Portugal, recordo a agonia de O Primeiro de Janeiro, onde ainda trabalhei, o que aconteceu em O Comércio do Porto, no Diário de Lisboa e no Diário Popular (todos desaparecidos). Mesmo assim, a viragem dos anos 80 para os 90 foram, digamos, de vacas gordas, apesar do fecho de O Diário e, mais tarde, de A Capital. Depois deles, nasceram o Público e canais privados de rádios e de televisões. Foram anos bons. Falo de negócios, condições de trabalho e salários, da respeitabilidade dos media. Mas sol de pouca dura. Que dizer da triste realidade de hoje? A minha solidariedade para os camaradas de A BOLA e do grupo Global Notícias.

Na viragem do século, tornavam-se já perceptíveis sinais inquietantes para a profissão. A sociedade estava em mudança e os poderes, político, económico… depressa se adaptaram à nova realidade. Ministros e executivos sabiam que precisavam de quem lhes passasse a mensagem e muitos têm sido – jornalistas incluídos – os que optaram pela assessoria. A importância das empresas de Comunicação cresceu tanto,
que hoje se sobrepõem às de Informação. Especializaram-se e muitas têm, até, mais profissionais do que as redacções dos poucos jornais que vão sobrevivendo.

E vieram os canais de informação contínua, que têm de ser alimentados durante 24 horas, neste país muito pequeno, de fraco mercado, ou fraco para o mercado. E com elas nasceram as «estrelas». Diz-se que estamos na sociedade do espectáculo!, conceito de Guy Debour, que conduz à «não intervenção» dos cidadãos e que, segundo ele, permite construir situações em que se pode aparecer sem réplica num registo de superficialidade instantânea. É o ponto onde estamos, onde a visibilidade, se não é, parece ser mais importante do que o conteúdo. Estamos numa sociedade que parece cada vez mais combater o cidadão empenhado e promover a apatia de qualquer pessoa, desinteressá-la da coisa pública, das vidas social e política, fazendo dela cordeiro de um rebanho teleguiado. Mas, como alerta Karl Popper, em democracia não deve haver
nenhum poder incontrolado e, como sempre dizia o antigo presidente do Conselho Deontológico do SJ, o saudoso Óscar Mascarenhas, aparecer sem réplica é o contrário do debate e facilita o caminho da tirania. Na forma de pensamento único, acrescentou eu.

Por vezes, tenho mesmo a sensação de que, para muitos, mais importante do que aprender a técnica da notícia é o domínio da tecnologia. Mais importante do que ir à rua descobrir coisas, procurar explicações, investigar, é saber procurá-las na Internet. Mais importante do que confirmar factos é publicá-los em primeiro lugar. Se estiverem errados, faz-se um desmentido a seguir, já me disseram. A mim, ensinaram-me que um desmentido é pior do que falhar um penalty.

Graças a uma revolução tecnológica, pela primeira vez na história, os três elementos da comunicação passaram a poder viajar juntos: texto, som e imagem. E, claro, logo os detentores dos meios de difusão se apressaram a comprar jornais, rádios, televisões. O tempo era de sinergias e havia que aproveitá-las! Mas não daquele jeito, sem respeito por regras e leis. Ainda esboçámos resistência, reivindicando remuneração pelos direitos de autor. Nós e muitos outros lá fora. Com experiências e resultados diferentes. Sem êxito no caso português. Por nossa culpa, claro, mas também de gente em lugares de chefia e/ou de direcção. Alguns até tinham sido dirigentes sindicais e activistas políticos.

Alguns donos dos meios de informação tinham começado a encarar o negócio na lógica da fábrica de salsichas. Mas nem todos vingaram. As telecom, por exemplo, apressaram-se a vender o que tinham comprado. Mas nada disso alterou a lógica de negócio, dito moderno, feito de sinergias… tantas que acabou por nascer o repórter McGyver, o jornalista-faz-tudo: uma notícia para o jornal, um apontamento para rádio, uma peça para a televisão. E tudo pelo mesmo… preço! Baixo salário e nada de protestos! A miséria salarial e a precariedade do emprego estão, aliás, bem expressas no Inquérito de 2015 feito pelo investigador João Miranda, do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra.

Antes, tinha já chegado um tempo em que os pareceres dos conselhos de redação deixaram de ser vinculativos, em que convém não dizer que se é sindicalizado, em que convém não resmungar nem questionar ordens ou serviços. Horários de trabalho também não. Nem pensar! E, se já tem subsídio de isenção de horário, que atrevimento!

Como se isso representasse disponibilidade total, escravatura em alguns casos. Assim, sem mais… pelo salário mínimo ou pouco mais! Manda quem paga, dizem. Manda o poder o económico. Agora, nem precisa. Outros mandam por ele. Os tempos são de mercado, de tiragens, de share e de audiências. Que é isso de independência editorial?

A revolução tecnológica criou em muitos a ideia de que, com ela, o que vai de borla é a informação. Antigamente, era a publicidade que era vendida nos jornais, nas rádios e nas televisões. Mas está à vista de todos, sobretudo nos jornais, que essa ideia de que a informação é grátis fracassou. Primeiro, com os gratuitos, depois com os ditos de referência, que também já não se importam de cobrir a primeira página com um anúncio.

Ouve-se dizer que o público não é estúpido; que sabe que a Informação é um elemento estruturante de qualquer democracia e que a independência editorial é um dos sinais claros de uma democracia adulta e saudável. Também se ouve dizer que o público sabe distinguir. O pior é quando não há muito por onde fazer destrinças ou quando não se apercebe ou desconhece que o Infotainment, enquanto instrumento de formatação das massas, é uma das causas do êxito dos populismos. O pior é quando não percebe que os chamados factos alternativos não passam de mentiras repetidas até serem adquiridos como coisas verdadeiras. «Neste mundo», alerta Pablo Ortellano 3 , «já não é suficiente produzir uma boa campanha com cartazes, panfletos e spots na rádio e na TV — é preciso também manipular a nossa percepção do que pensam as pessoas ao nosso
redor».

E é neste pé que estamos. Com uma informação doente, empresas com pouca saúde, maus ambientes de trabalho, jornalistas tentando impor-se segundo a lei do cotovelo – afasta-te que tenho de passar – outros simplesmente resignados, redacções sem idade nem memória, uma classe muito marcada pelo individualismo e, por isso mesmo, pouco ou nada solidária, enfraquecida perante as adversidades e as ameaças.

Por culpa nossa também. Só não vê quem não quer. Não podemos ficar de braços cruzados! Façamos com que este sindicato valha a pena!