Rui Cardoso: Combater a novilíngua, condição necessária para um jornalismo digno desse nome

Rui Cardoso: Combater a novilíngua, condição necessária para um jornalismo digno desse nome

Assiste-se a um empobrecimento do português usado nos textos jornalísticos. Predominam os modismos, os tiques de linguagem, as importações acríticas de palavras inglesas, quando não erros gramaticais de bradar aos céus. Não se trata de defender que escrevamos ou falemos como os nossos avós. Camilo não escrevia como Sá de Miranda, nem Saramago como Fernando Pessoa. A língua é um organismo vivo em permanente evolução. Mas, tal como na natureza nem todas as mutações são benignas, no português jornalístico muito menos.

Para um jornalista, a língua é uma das suas ferramentas de trabalho, porventura a mais importante. Ao trabalho jornalístico aplica-se a tese de Júlio César sobre as virtudes femininas: não basta ser sólido do ponto de vista das fontes, do rigor factual e do distanciamento – é preciso que o pareça, ou seja, que a linguagem seja rigorosa, formalmente correcta e, ao mesmo tempo, capaz de envolver o leitor.

Infelizmente assiste-se ao oposto, com empobrecimento do vocabulário e afunilamento dos modos de expressão. Os doentes nunca mais foram operados, passaram a ser “submetidos a cirurgias”. Os edifícios deixaram de desabar, as encostas de sofrer derrocadas ou as pontes de cair. Tudo “colapsa”. Adeus limites ou exigências – o que não se pode passar são as “linhas vermelhas”. As propostas, políticas ou soluções, passaram a frequentar o ginásio ou tomar esteróides para se tornarem “robustas” (em vez de sólidas, eficazes, adequadas ou funcionais). Num universo lexical em que os apoios passaram a meros “suportes”, cessou o estudo, acompanhamento, medida, avaliação ou vigilância: “monitoriza-se…”

Passando do modismo ao erro gramatical crasso, transformam-se verbos comuns em reflexivos, como alastrar que, vá-se lá saber porquê se tornou reflexivo: o incêndio, o conflito ou a epidemia “alastram-se”. O que além do mais é um erro de lógica: um fogo não se alastra a si próprio… Também se pontapeia violentamente a gramática em matéria de verbos defectivos. Haver não tem plural: não se diz haverão ou haveriam. No presente do indicativo, falir, chover ou ladrar não têm a primeira nem a segunda pessoa, a não ser em contexto metafórico.

Com a agravante de, tal como na Lei de Gresham a má moeda tender a expulsar a boa moeda, o mau português tender a escorraçar o escorreito. Num caso que deu brado e tinha a ver com a distribuição, nas aldeias rodeadas por floresta, de golas supostamente resistentes ao fumo, alguém se lembrou de as classificar como “golas inflamáveis” e a expressão generalizou-se na comunicação social. Quando chamei a atenção para a circunstância de o adjectivo “inflamável” designar substâncias que entram facilmente em combustão na presença de uma fonte de calor (como a gasolina, o álcool ou o papel), o que não era o caso daqueles tecidos (que quando muito não teriam tratamento ignífugo como os fatos dos bombeiros ou dos pilotos de automóveis) foi-me dito por um jovem proto editor que isso era uma chinesice e que, alem do mais, dava muito trabalho a alterar por causa dos links já consolidados nas notícias on line…

Falta falar numa outra ameaça não menos perniciosa, a da influência do inglês aprendido à pressa. Em vez de se homenagearem pessoas ou instituições passou-se a “prestar tributo”. Os serviços de informações, espionagem ou contra-espionagem passaram a ser “de inteligência” (também os haverá de estupidez?). Para não falar nesse oximoro capaz de fazer Bento de Jesus Caraça, Rómulo de Carvalho ou Mariano Gago revolverem-se na tumba. Aquilo que é evidente, isto é, que entra pelos olhos dentro, não carece, por isso mesmo, de explicação científica. Em contrapartida, aquilo que é científico raramente é evidente, por recorrer a conceitos, matemáticos ou outros, com os quais o cidadão comum não está familiarizado. Daí a importância da divulgação científica. “Evidence” em inglês significa somente prova, seja esta do foro científico ou jurídico, e não qualquer outra coisa.

Da mesma forma que no inglês falado nos EUA a palavra “corporation” designa as empresas cotadas em bolsa. Logo, não há “políticas corporativas” mas, quando muito, empresariais. Em português, corporações são as dos bombeiros, as dos artesãos da idade média (tecelões, ourives, correeiros, etc.) ou as instâncias de conciliação entre capital e trabalho criadas pelo Estado Novo. Tal como não se procede ao “empoderamento” de ninguém. “Empowerment” traduz-se por ter acesso a algum tipo de poder ou responsabilidade ou, mais simplesmente, por capacitação. A expressão coloquial “at the end of the day” tem como equivalente algo como “ao fim das contas”, “em última análise” ou algo similar.

E esta deambulação pelo reino do disparate não podia terminar sem uma referência às “armas de destruição maciça” (filhas bastardas de weapons of mass destruction). Maciço significa, apenas, o contrário de oco. Ao menos armas de destruição em massa… E que dizer de designar incidentes com armas de fogo, frequentes como se sabe nos EUA, por tiroteios? Tiroteio pressupõe uma troca de disparos entre dois indivíduos ou grupos. Resulta da confusão entre “shooting” (disparos) e “gunfight” (esse, sim, tiroteio).

Não se trata apenas de combater a novilíngua das “evidências” e dos “serviços de inteligência”. A escolha das palavras nunca é inocente. Os islamo-fascistas que em 2015 massacraram nas ruas de Paris ou degolaram inocentes em Mossul ou Sirte não pertenciam a nenhum “Estado Islâmico” porque, nem este reunia as condições internacionais mínimas para ser aceite como tal, nem a sua interpretação do islamismo era representativa, por ser primária, sanguinolenta e ultraminoritária. Por isso, boa parte dos media e dos profissionais preferiu o acrónimo árabe Daesh, para nós um mero vocábulo destituído de carga, ainda que em árabe tenha alguma conotação irónica.

Em 2017, uma das comunicações apresentadas ao IV Congresso dos Jornalistas criticava a utilização da palavra “colaborador” no noticiário económico, uma vez que, subliminarmente, diluía a relação entre empregador e empregado, reduzindo este último a uma espécie de ser descartável, tendencialmente destituído de direitos laborais e a caminho da precariedade. E nessa altura ainda pouco se falava de “uberitos”, motoristas de táxis das plataformas e demais proletariado da internet…

A novilíngua não é imposta por um tirano orwelliano mas por aquilo a que Jorge Vaz de Carvalho chamou “o imperialismo da língua inglesa e o colonialismo do português brasileiro”. Que sejamos mais bem-sucedidos a enfrentá-la que Winston Smith na sua luta solitária contra o Big Brother.