Isabel Nery: Sobre o Digital Absoluto e Outros Perigos de Morte

Isabel Nery: Sobre o Digital Absoluto e Outros Perigos de Morte

Dados recolhidos num questionário aplicado a estudantes universitários sobre as preferências relativas à leitura em papel e dispositivos eletrónicos permitiram concluir que os jovens preferem os meios digitais para obter informação, mas para uma leitura imersiva, 84% escolhem o papel. Sabemos mesmo para onde vamos com o digital absoluto?

Recorro a um estudo que fiz junto de jovens universitários para trazer à reflexão a forma precipitada como, por vezes, se tomam conclusões (e decisões) sobre o consumo de informação. E alerto para algumas das armadilhas que o digital, com todas as suas vantagens, nos pode estar a estender.

A análise baseou-se num questionário aplicado a cerca de 500 alunos universitários, a quem foi pedido em 2019 que respondessem a várias perguntas sobre os seus hábitos de leitura de jornais e a preferência por suportes informativos em papel ou digitais.

As respostas ao questionário permitem concluir que:

  1. A amostra afirmou preferência pelo consumo de informação através da internet (77%) e das redes sociais (mais de 20%);
  2. Apesar disso, mais de 90% dos respondentes do questionário consideram que a leitura em papel ou dispositivos eletrónicos é diferente;
  3. Cerca de 74% entendem que a leitura em papel lhes permite assimilar melhor a informação;
  4. Para uma leitura imersiva, 84% preferem o papel;
  5. Embora tendo sido claros na sua preferência por consumo de notícias online, os estudantes foram ainda mais enfáticos na sua escolha por leitura em papel quando o pretendido é a imersão e compreensão de um texto.

Se os jovens valorizam tanto os dispositivos eletrónicos, ao mesmo tempo que admitem de forma esmagadora a melhor compreensão de conteúdos lidos em papel, poderemos estar perante um grave problema de transmissão de informação e conhecimento para as próximas gerações.

Em Portugal, como noutros países, as redes sociais tornaram-se uma das principais fontes de informação (Gustavo et al., 2023). E enquanto elas crescem, as vendas dos meios em papel descem (Andi et al., 2020), com prejuízo não apenas para os órgãos de comunicação, mas também para os resultados escolares (Hassell et al., 2016).

O comsumo de media eletrónica está associado de forma negativa às notas dos estudantes (Jacobsen e Forste, 2010). Por cada hora de exposição a meios eletrónicos, as médias universitárias podem reduzir entre 0.05 a 0.07 pontos (Coyne et al., 2013). Para efeitos de aprendizagem, estudantes questionados tanto nos EUA como no México afirmaram que preferem ler em papel e que a leitura digital está limitada a uma hora de concentração (Cull, 2011).

Apesar da afirmada preferência pelos conteúdos online e na palma da mão dos jovens do nosso questionário, mais de 90% consideram que a leitura em papel ou dispositivos eletrónicos é diferente e mais de 74% entendem que a leitura em papel lhes permite assimilar melhor a informação. Para uma leitura imersiva, 84% optariam pelo papel, dado com especial relevância numa população com média de idades de 22 anos.

As respostas dos universitários portugueses encontram explicação científica em vários estudos. No papel, os textos obrigam a uma relação sensorial e motora com o leitor que é diferente da estabelecida nos textos em dispositivos. Uma leitura menos física (sem contacto com o papel) pode impedir a imersão no texto. Ler em ipad afeta a noção de localização (Mangen e Kuiken, 2014), causando estranheza em relação aos conteúdos que exigem a manipulação do dispositivo e levando a uma pior compreensão do que é lido (Mangen et al., 2013).

Apesar de algumas investigações apontarem para a vantagem do texto impresso, enquanto outras favorecem o digital, meta-análises como as de Delgado et al. (2018) permitiram algumas conclusões sustentadas: quem lê em computador teve piores resultados nos testes escolares do que os leitores de papel; há uma inferioridade dos ecrãs, com mais baixos níveis de compreensão para textos digitais; há uma correlação negativa entre a frequência de leitura digital e a compreensão do texto; scrolling pode adicionar uma sobrecarga cognitiva à função da leitura, dificultando a orientação espacial no texto não impresso.

A competição entre a facilidade do que é partilhado nas redes sociais, proporcionando prazer e distração sem esforço, e a exigência necessária à leitura imersiva facilita a desistência de tarefas mais complexas.

No universo digital tudo se baseia no fácil e prazeroso. E essa é a grande armadilha – para o jornalismo e para as sociedades democráticas. Porque um não vive sem as outras. O mundo que estamos a construir, alerta Williams, cria as maiores ameaças à liberdade e à democracia – as invisíveis. “No futuro, os mais terríveis adversários da liberdade não vão surgir dos nossos medos, mas sim dos nossos prazeres” (2021, p. 26).
A leitura rápida e em modo scan dificulta a interpretação, levando a argumentações mais exíguas e acríticas do que nos rodeia, num verdadeiro estender de tapete aos populismos. Talvez porque, como advoga Han (2021, p. 30), “sem o tato físico não se cria relação”. E, acrescentamos nós, sem relação não há sedução – nem escuta.

Apesar de sinais como o aumento da ansiedade social e depressão causados pelas redes sociais, que arrastam já muitos para a cibercondria (Williams, 2021), não se fala sequer de ameaça porque, na ligeireza da facilitação e prazer imediato, poucos detetam o perigo.

Em 2023, a Suécia fez manchete em jornais de vários países do mundo devido à inversão de políticas públicas relativamente à leitura e aprendizagem em dispositivos eletrónicos. Apesar de ser um dos Estados que mais investiu na aprendizagem digital, com os ecrãs a substituírem os livros em papel nos últimos 15 anos, os organismos públicos responsáveis pelas políticas de educação anunciaram um apoio extraordinário para o regresso aos manuais tradicionais: 60 milhões de euros em 2023 e 45 milhões por ano em 2024 e 2025 para acelerar o regresso às escolas dos livros em papel. A medida da Agência Nacional de Educação foi tomada com base no aconselhamento de profissionais de saúde, preocupados com a substituição demasiado rápida do papel por ecrãs. O objetivo passou a ser garantir um livro por disciplina a cada aluno (Hivert, 2023).

A Educação gratuita e universal foi uma das maiores conquistas de Abril, a par da liberdade de expressão. Quanto mais letrados, mais exigentes serão os nossos leitores.

Educação e Jornalismo estão umbilicalmente ligados. Se o digital absoluto não serve à Educação, poderá servir ao Jornalismo e à Democracia?

Referências
Andi, S., Newman, N., Fletcher, Nielsen, R. K., Shulz A., (2020). Reuters institute digital news report 2020. Report of the Reuters Institute for the Study of Journalism.
Cardoso, G., Paisana, M., Quintanilha, T. L., Pais, P. C. (março 2018). Literacias na Sociedade dos Ecrãs. Observatório da Comunicação. Disponível em https://obercom.pt/literacias-na-sociedade-dos-ecra%CC%83s/
Cardoso G., Paisana, M. e Martinho, A. (2023). Digital News Report – Portugal 2023.
Coyne, M. S., Padilla-Walker, L. M., & Howard, E. (2013). Emerging in a digital world: a decade review of media use, effects and gratifications in emerging adulthood. Emerging Adulthood, 1 (2), 125-137. https://doi.org/10.1177/2167696813479782
Cull, B. W. (2011). Reading revolutions: Online digital text and implications for reading in academe. First Monday, 16(6). https://doi.org/10.5210/fm.v16i6.3340
Delgado, P., Vargas, C., Ackerman, R., & Salmerón, L. (2018). Don’t throw away your printed books: A meta-analysis on the effects of reading media on reading comprehension. Educational Research Review, 25, 23-38. https://doi.org/10.1016/j.edurev.2018.09.003
Han, Byung-Chul (2021). No-Cosas. Uruguai: Taurus.
Hassell, M., & Sukalich M. (Dezembro 2016). A deeper look into the Complex Relationship between Social Media Use and Academic Outcomes and Attitudes. Information Research, 21 (4). https://files.eric.ed.gov/fulltext/EJ1138645.pdf
Hivert, A. F. (21 maio 2023). “Too fast, too soon? Sweden backs away from screens in schools”. Le Monde.
Jacobson, S., Marino J. e Gutsche Jr R., (2016). The digital animation of literary journalism, Journalism, 17, 4, 527-546.
Mangen, A., Walgermo, B. R. e Kolbjorn, Bronnick (2013). Reading Linear Texts on Paper versus Computer Screen: Effects on Reading Comprehension. Elsevier.
Mangen, A. (2016). The digitalization of literary reading – Contributions from empirical research, Orbis Litterarum, 71, 3, 240-262.
Mangen, A. e Kuiken, D. (2014). Lost in an ipad – Narrative engagement on paper and tablet, Scientific Study of Literature, 4, 2, 150-177.
Williams, James. Clics Contra la humanidad – Libertad y Resistencia en la Era de la Distracción tecnológica. Barcelona: Gatopardo Ediciones.