Carlos Camponez: Por uma cidadania mediática

Carlos Camponez: Por uma cidadania mediática

O motivo desta intervenção visa recolocar à discussão a possibilidade de criação de um organismo de corregulação do jornalismo e dos media em Portugal, a exemplo do que aconteceu com o extinto Conselho de Imprensa, que funcionou entre 1975 e 1990. A defesa da ideia de que existe uma ligação intrínseca entre o Jornalismo e a democracia implica também que os jornalistas incluam nas suas práticas de regulação entidades públicas ou privadas, organizações sociais e cidadãos civicamente empenhados com a qualidade da informação e da opinião pública.

A regulação do jornalismo em Portugal encontra-se espartilhada entre a Entidade de Regulação da Comunicação Social (ERC), a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) e o Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas. Esta situação explica a atual sobreposição de papéis, de funções e de pareceres, com que nos confrontamos na atualidade. Para além disso, este sistema não colmata alguns vazios nem responde cabalmente aos novos desafios que se colocam a estes organismos, tão-pouco às ameaças que resultam de uma sociedade civil tendente a considerar, no atual sistema mediático, o jornalismo como uma questão dos media e dos jornalistas.

Um conselho de imprensa, tal como o entendemos, é a instituição de corregulação capaz de ultrapassar os impasses resultantes da tutela da ERC sobre o jornalismo, dos condicionalismos legais que pendem sobre uma maior intervenção pública da CCPJ e dos limites organizacionais e de representação do Conselho Deontológico. Para além disso, é o mecanismo capaz de ultrapassar problemas identificados desde, pelo menos, o 2º Congresso dos Jornalistas, em 1986, ligados à questão das competências do Conselho Deontológico e da criação de uma entidade pública do tipo ordem de jornalistas.

Independentemente da estrutura que se venha a adotar na sua constituição, urge integrar no sistema de autorregulação do jornalismo representantes da sociedade civil organizada, a exemplo do que tem sido a prática europeia.

Em 2020, o Conselho de Deontologia Jornalística e da Mediação, em França, identificou 29 conselhos de imprensa, na Europa, dos quais 19 pertenciam à União Europeia. No final do ano passado, uma iniciativa liderada pelos conselhos de imprensa finlandês e belga de língua neerlandesa lançou um projeto com o apoio da União Europeia para a criação de novos conselhos de imprensa em países onde estas estruturas ainda não existem, pelo que se espera que este número venha a aumentar nos próximos anos.

Joaquim Fidalgo, em Portugal, Hugo Aznar, em Espanha, Claude-Jean Bertrand, nos Estados Unidos, Daniel Cornu, na Suíça, consideraram os conselhos de imprensa como uma das formas mais completas e estimulantes para alcançar os objetivos da autorregulação dos jornalistas. Entre esses objetivos contam-se: dar expressão à defesa dos direitos do público; dar visibilidade pública às normas deontológicas; proteger o jornalismo do poder dos interesses económicos, dos grupos sociais de interesse organizado e das iniciativas reguladoras do poder político; evitar as derivas excessivas dos media; desempenhar um papel de árbitro entre o público e os meios de comunicação; interpretar as normas profissionais; e impor o respeito por esses preceitos. A estes objetivos, acrescentaria eu, contribuir para uma cidadania mediática, promovendo a participação dos cidadãos nos princípios, nos problemas e na discussão acerca de uma informação pública de qualidade.

Um dos óbices que durante muito tempo se levantou aos conselhos de imprensa tinha a ver com o facto de eles contrariarem o princípio deontológico, consagrado na Carta de Munique e no Código da Federação Internacional de Jornalistas (FIJ) segundo o qual, em matérias de honra profissional, os jornalistas deviam aceitar apenas a jurisdição dos seus pares. Sintomaticamente, em 2019, procedeu-se à revisão do código da FIJ, onde passou a constar: “(…) o/a jornalista apenas aceitará, em matéria de honra profissional, a jurisdição de instâncias de autorregulação independentes, abertas ao público, excluindo toda a intrusão governamental ou outra”.

No âmbito da investigação de doutoramento que realizei sobre a autorregulação dos jornalistas, entrevistei antigos presidentes do conselho deontológico e todos eles foram unânimes quanto à importância do Conselho de Imprensa que vigorou em Portugal. Nessas entrevistas, Maria Antónia Palla considerou que os jornalistas davam mais importância ao Conselho de Imprensa do que ao Conselho Deontológico devido à repercussão pública das suas deliberações. Salientando também este aspeto, Óscar Mascarenhas acrescentou a importância de estarmos perante um organismo onde os jornalistas podiam fazer ouvir a sua voz, sem, no entanto, terem capacidade de se imporem aos outros membros, tal como, de resto, acontecia com todas as partes representadas. Ribeiro Cardoso afirmava mesmo que, comparativamente com o Conselho de Imprensa, «o Conselho Deontológico [do Sindicato dos Jornalistas, na altura] era uma coisa caseira». Daniel Reis, reticente a um sistema apenas restringido à autorregulação do jornalismo, defendia o Conselho de Imprensa devido à possibilidade de nele participarem representantes do público. E justificava: “exigir-se que as notícias obedeçam a critérios de significado deontológico, para não ir mais longe, não é em benefício nem dos jornalistas nem dos patrões: é em benefício do público”.