Paulo Moura: “Tinha vontade de mudar o mundo”
Presente no 5º Congresso dos Jornalistas, Paulo Moura vem partilhar a experiência de ser repórter em Portugal. Após 23 anos no Público, hoje é jornalista freelancer, professor de Jornalismo na ESCS e autor de mais de uma dezena de livros. Foi ainda galardoado com diversas distinções, entre as quais o Prémio Gazeta de Jornalismo pelas reportagens que desenvolveu sobre a Primavera Árabe, no Egito e na Líbia, e o Prémio Direitos Humanos e Integração da Comissão Nacional da UNESCO, pelo artigo “A Revolução virá do Campo”, realizada na China. É uma das figuras da grande reportagem e do jornalismo literário português.
Foi jornalista no “Público” durante mais de 20 anos, depois passou a exercer como freelancer. Qual considera ter sido o momento crucial para ser reconhecido como um dos melhores repórteres da imprensa portuguesa?
Paulo Moura (PM): Há momentos que, por várias razões, foram importantes na minha vida profissional. Lembro-me de um primeiro episódio que me lançou como repórter internacional. Logo no início, quando entrei para o Público, estava ainda a estagiar na secção do internacional, recebemos um convite para visitar a Argélia, no contexto de uma visita política. O convite não era para mim, era para uma outra jornalista especialista em Médio Oriente, só que ela não podia ir e então pediu-me a mim. Claro que aceitei logo. Estavam lá muitos políticos importantes, como o Pacheco Pereira e o Armando Vara, e vários jornalistas, quase todos editores de internacional dos vários jornais. Eu era o único estagiário. Um dia fomos todos jantar ao palácio do presidente e estávamos nós no grande salão quando o Pacheco Pereira disse: “Sabem quem é que está ali na sala ao lado?” Era George Habash, na altura, o terrorista mais procurado no mundo, líder da fação mais radical da OLP (Organização de Libertação da Palestina). Não sei o que me passou pela cabeça, mas levantei-me logo e dirigi-me à sala ao lado. Eu não sabia quem era o Habash, mas olhei para aquele que me parecia mais mal-encarado, fui ter com ele e comecei a falar, fiz todo um discurso para ver se conseguia uma entrevista. Mal cheguei ao hotel vi que aquele com quem falei não era o Habash mas à noite ligaram-me para me oferecer uma entrevista, não com ele mas com o chefe de comunicação da OLP. Eu fui, embora contrariado pois não era o que queria. Pedi muito, implorei-lhe para conseguir falar com o Habash. Pensava que não ia dar em nada, mas ele acabou por aceitar. Até então, ele nunca tinha dado nenhuma entrevista a nenhum órgão de comunicação. Esse artigo foi publicado no New York Times, na Reuters, em todo o lado! Pouco depois rebentou a crise na Argélia e fui como enviado especial pelo jornal, fiquei lá três meses. Tudo partiu dessa minha “lata” de ir ter sozinho com o George Habash e falar com ele.
Depois de duas décadas a trabalhar no Público, o que é que o levou a optar por seguir o seu percurso como freelancer?
PM: Foram várias coisas. Primeiro, porque já tinha estado 23 anos a trabalhar no Público. Estive lá muito tempo e queria experimentar outras coisas que não conseguia fazer a trabalhar num jornal, porque é preciso cumprir prazos e não tens muito tempo para aprofundar as coisas. Como freelancer posso gerir o meu tempo e posso fazer aquilo que quero, quando quiser. Por outro lado, o jornalismo também tinha mudado muito nos jornais. No princípio havia muito dinheiro e vontade do jornal para fazer reportagens internacionais. Eu fiz a cobertura de todas as guerras nos últimos 30 anos, por exemplo. Mas, a partir de certa altura, começou a haver cortes no orçamento. Eu propunha ir a um sítio e não podia porque não havia dinheiro, por isso tornou-se muito mais difícil fazer esse trabalho. Vi que a minha carreira, que tinha estado sempre a crescer, começou a decair, por isso saí, para poder trabalhar com mais tempo, escrever livros e esse tipo de coisas.
Que dificuldades é que enfrentou?
PM: É muito difícil, principalmente porque o mercado português é muito pequeno. Há poucos órgãos de comunicação social e os poucos que existem não querem gastar muito dinheiro. Além disso, pagam muito mal. Se já pagam mal aos jornalistas do quadro, o trabalho freelancer é muito pior. Chegam a oferecer 100€ ou 200€ por um trabalho que demorou um mês a fazer, não é viável. Só é possível conjugando várias coisas, como escrever livros ou dar aulas. Outro problema é a falta de apoio jurídico. Quando estava no Público fui uma vez processado e pediram uma indemnização de 200 mil euros. Se eu estivesse sozinho não conseguia contratar um advogado e de certeza que não conseguia pagar essa quantia.
Alguma vez pensou em voltar para o jornal?
PM: Nunca! Isto é algo em que não se volta atrás, quando já se tem a experiência que eu tive. Percebo que alguém que nunca teve essa experiência tenha o sonho de trabalhar numa redação, também tem o seu encanto. Mas eu já fiz tudo o que é possível fazer num jornal, nunca tive pena de não ter conseguido fazer alguma coisa. Portanto, nunca voltaria a trabalhar numa redação. É bom ter esta liberdade. Não tenho chefe, não tenho de dar contas a ninguém, faço o que quero. Se hoje não quiser trabalhar, trabalho a dobrar amanhã.
À semelhança do icónico jornalista polaco Ryszard Kapuscinski, é licenciado em História e desde muito cedo sentiu um interesse pelos acontecimentos do mundo. De que modo a História é importante para se ser um bom jornalista?
PM: Eu acho que é essencial. Claro que há pessoas que têm formações diferentes, isso depende daquilo que a pessoa faz. Para aquilo que eu faço, a base histórica é fundamental. Acho que ter uma perspetiva histórica é muito importante para compreender o presente. Os jornalistas têm de estudar história, para entender aquilo que se está a passar. É essencial para fazer um bom trabalho. O repórter, muitas vezes, é mesmo uma espécie de “pequeno historiador”, é alguém que está a fazer história naquele momento.
Além de jornalista também é professor na Escola Superior de Comunicação Social (ESCS). Foi orador no painel “Como ensinar a ser repórter”, no 5º Congresso dos Jornalistas. Quais são os requisitos obrigatórios para se ser repórter?
PM: Um bom repórter tem que, antes de tudo, ser alguém com muita curiosidade, com genuíno interesse em saber e compreender o que se passa. É preciso ter uma grande vontade de compreender o mundo, saber o que se passa e porquê, investigar e aprofundar. Sem interesse não se faz um bom trabalho. Depois, é preciso ter uma base de cultura geral para compreender e interpretar a realidade. Muitas vezes pensa-se que o repórter é alguém que está no imediato, a fazer as coisas muito rapidamente, mas não. O trabalho muito imediato, como na televisão, onde se está em cima do acontecimento, só está a ser bom porque o jornalista estudou, investigou, pesquisou e fez muitas entrevistas para ter a capacidade de compreender o momento e reagir de forma adequada. Um bom repórter tem também de ser humilde. É preciso ter abertura para compreender os outros, mesmo aqueles com quem não concordamos. Temos de esquecer as nossas convicções, aquilo que somos, aquilo que achamos que sabemos, e ser totalmente abertos para compreender os outros. Isso implica alguma humildade pessoal. Eu posso pensar de uma maneira mas se calhar a outra pessoa tem razão. Depois, é também essencial dominar pelo menos um meio de comunicação, ser bom a escrever, a gravar vídeo, a fotografar. Há quem ache que é bom a fazer tudo, mas eu acredito pouco nisso. Acho que já passou de moda a crença de que o jornalista tem de ser um canivete suíço. Deve saber fazer um bocadinho de tudo, mas quem domina uma linguagem tem logo uma vantagem enorme. Consegues transmitir as coisas de uma forma mais profunda, mais sedutora.
Considera que a imprensa escrita ainda tem mais importância do que outros meios, como a televisão ou a rádio?
PM: Depende. Em termos de audiência e do número de pessoas que têm acesso, penso que não. O audiovisual tem muito mais predominância do que outros meios. Mas é uma ilusão pensarmos que o mais importante do jornalismo está nesses meios de massa. Primeiro, porque as pessoas que podem ser consideradas “elites culturais”, que têm mais poder e mais proeminência, dão mais importância à informação escrita do que televisiva. Depois, os próprios protagonistas da informação dão mais informação à imprensa escrita do que dão ao audiovisual. Portanto, a imprensa escrita ainda é mais influente do que o audiovisual. Apesar de não parecer, ainda vivemos uma civilização da escrita, o livro tem mais prestígio que o digital.
Em novembro de 2022, lançou “Viagem ao Coração de Uma Guerra Futura”, uma reunião de crónicas de guerra sobre as viagens à Rússia, Ucrânia e Leste Europeu. Antes, já publicou cerca de 12 livros. A publicação em livro é uma forma de contar as histórias que não têm espaço no online?
PM: É um meio diferente. Quando eu escrevia mais assiduamente para o jornal não tinha tempo nem tinha necessidade de escrever livros. O livro é um suporte diferente e, como já disse na pergunta anterior, tem mais prestígio e mais credibilidade. Depois também tem mais espaço para tratar os assuntos com outras profundidade. Quem realmente quer aprofundar um tema vai ler um livro sobre esse mesmo tema, não vai ler jornais. E há também histórias e ideias tuas que não tens espaço para expor na internet e nos jornais.
A propósito de jornalismo literário, sendo repórter, onde é que se encontra a fronteira entre a ficção e o jornalismo?
PM: A fronteira é absolutamente clara e nítida. A ficção é o território da mentira e o jornalismo tem de ser verdade. O jornalismo literário não tem nada a ver com ficção, é apenas uma forma de fazer jornalismo que vai tentar roubar alguns recursos à literatura na forma de escrever, na forma de contar e até na forma de investigar, mas as regras do jornalismo literário são as mesmas do jornalismo convencional. Claro que podemos entrar sempre em considerações mais filosóficas. Tudo aquilo que se escreve e tudo aquilo que se lê no jornalismo tem sempre uma componente de ficção, tem sempre uma construção da realidade. Mas, na prática, há coisas que são verdade e coisas que são mentira. No jornalismo literário não se faz nenhuma condescendência à ficção, tem de ser tudo confirmado, segue-se todas as regras do jornalismo convencional.
Tendo feito reportagens nos conflitos na Argélia, no Afeganistão, no Iraque e em muitos mais palcos de guerra, qual diria que foi o mais marcante?
PM: Não sei dizer, por várias razões. Alguns porque foram os primeiros e eu ainda era muito novo. Na Argélia, por exemplo, logo a seguir àquele episódio do início, que relatei, começou uma guerra civil horrível. Cheguei a ser mesmo preso e expulso do país e a pessoa que estava comigo foi espancada à minha frente. Na altura não estava habituado a esse tipo de coisas, mas já passei por muito pior, na Chechénia, no Iraque, no Afeganistão, na Líbia. Uns sítios marcaram-me por uma extrema violência, outros foi pelo contrário, pela extrema generosidade das pessoas. Há o lado mau do ser humano, mas também há o lado bom, que muitas vezes não se manifesta na nossa cultura, porque não é necessário. Isso também são coisas que marcam. O que choca nestas guerras não é o sangue propriamente dito, são as histórias das pessoas concretas. Quando conheces uma pessoa e já estás com ela, já te tornaste amigo dela e de repente ela morre. Quem sofre mais nestas situações são as pessoas, não são os jornalistas. Às vezes perguntam-me se não fiquei traumatizado por causa daquilo que vi, mas o jornalista nunca vive aquelas situações como as pessoas de lá, porque a qualquer momento podemos apanhar um avião e voltar para o conforto da nossa casa.
Afirmou, no painel do congresso, que tinha vontade de mudar o mundo. Foi o que o levou a fazer esse tipo de cobertura?
PM: Sim, no início era essa a minha motivação pessoal. Eu queria que o mundo se tornasse um lugar mais justo, que as pessoas tivessem direitos, que não houvesse mais guerras, eu era muito idealista. Isso também tem a ver com uma época, eu ainda vivi o 25 de abril. Era muito novo, tinha 13 anos, mas vivi aqueles anos seguintes em que os jovens se envolveram em movimentos e na política, portanto tinha essa atitude de que tudo o que fazia tinha de mudar o mundo para um lugar melhor. Acreditei que o jornalismo era uma forma de o fazer, não através do jornalismo ativista, de que eu discordo totalmente, mas da própria função do jornalista de dar a conhecer as realidades ou denunciar as coisas.
E sente que conseguiu fazer isso?
PM: Claro que sim! Numa medida muito pequena, mas se não acreditasse nisso já tinha saído da profissão há muito tempo. Só se consegue fazer jornalismo se acreditares que aquilo que estás a fazer contribui para tornar o mundo melhor, mesmo que de forma indireta e a longo prazo, porque vai denunciar a situação perante o mundo e se calhar vai desencadear um movimento perante as opiniões públicas.
Na sua nota biográfica, refere que segue sempre por “caminhos difíceis, lugares pouco recomendáveis e más companhias”, graças aos quais mantém “a forma e a saúde”. Considera que a coragem é essencial para conseguir sobreviver e realizar um bom trabalho em palcos de guerra?
PM: Claro que é preciso, é preciso ter uma mentalidade para se adaptar às coisas. Não é só a parte do perigo, é também o desconforto. Tens de estar preparado para não dormires numa cama e não comeres durante um mês. A maioria das pessoas não se sujeita a isso. No que toca ao perigo, acho que é importante ter coragem, mas mais importante ainda é ter medo. Quando uma pessoa trabalha nesses cenários que são perigosos, tem de se ser muito racional, tem de se fazer um cálculo dos riscos em cada momento, ver se compensa ou não. Não vale a pena fazer uma reportagem e a seguir morrer. Pessoas que se emocionam muito, que arriscam muito, não devem fazer este tipo de trabalho. A pessoa que faz isto tem de ser muito racional, muito frio, não nos se pode emocionar no momento. Pode emocionar-se a seguir, se for preciso pode até chorar um mês, mas naquele momento tem de ter frieza.
E quem são essas “más companhias”?
PM: Referia-me ao facto de não andar com as pessoas recomendáveis, de não andar nos lugares limpos, seguros, com pessoas que compreendes, que são da mesma classe que tu. É arriscar e andar com pessoas estranhas para ti, porque são diferentes, que não compreendes. Sítios onde podem acontecer coisas más ou perigosas. É estar aberto ao mundo e não te isolares numa cápsula.
Tendo em conta a atual crise no Grupo Global Media, que importância é que um congresso feito por jornalistas e para jornalistas tem na profissão?
PM: Acho que um congresso é sempre importante, mas desta vez coincidiu com esta situação, que tornou mais visível este problema. Nesse sentido, “caíu bem” porque permite que o tema seja discutido, que as pessoas reflitam sobre isso e que os políticos atuem. O congresso é também uma forma de discutir possíveis formas de solucionar este tipo de crise, designadamente as formas de financiamento dos media, porque é um tema muito importante e as pessoas não se entendem em relação a isso. É preciso debater sobre como é que estes órgãos de comunicação se vão financiar quando o mercado não o faz. Se não vendem, será que não deve haver jornalismo? O jornalismo não vende, porque as pessoas não querem comprar, mas é um serviço público. Sem ele a nossa sociedade e a nossa democracia podem estar em perigo. Mas quem é que vai apoiar? É o Estado? São empresas privadas? É o próprio público? Isso tem de ser debatido, não só nas sessões mas entre as pessoas.