Os erros do jornalismo que contaminam a língua portuguesa

Os erros do jornalismo que contaminam a língua portuguesa

O jornalismo utiliza a língua portuguesa como ferramenta essencial. Mas nem sempre essa ferramenta é bem utilizada. Será que a língua portuguesa está em risco?

A professora Carla Marques admite que o risco existe realmente, muito associado ao excesso de oralidade que se sente nos textos, principalmente entre as jovens gerações. “O contacto muito prolongado com a oralidade, que pode não ser tão correta, pode gerar esse efeito. De facto, quando vou espreitar alguns dos ‘tiktoks’, programas de ‘influencers’ ou podcasts que são ouvidos pela camada mais jovem, noto, de facto, um grau muito elevado de incorreções”, salienta. “E isto tem influência, obviamente que tem influência”, acrescenta a linguista, ligada ao portal Ciberdúvidas.

A linguagem verbal é aquilo que nos distingue dos restantes animais. É o instrumento que nos permite pensar, raciocinar, imaginar e criar. A literatura, a codificação gramatical e o aumento da escolarização, contribuíram para estabilizar o que é hoje a nossa língua.

Hoje em dia, os meios de comunicação social e os usos da língua influenciam, diariamente, a forma como comunicamos. Ao longo dos últimos anos, com o aumento da precariedade do jornalismo, os revisores das redações foram ficando para trás.

Dar notícias em cada instante e em cada minuto retira tempo para preparar e rever os textos. Muitas vezes quem escreve é quem publica, o que diminui ainda mais o olhar externo sobre aquilo que é produzido. Mas esta pressa na produção não é evidente para o consumidor final. Valorizado socialmente, o jornalismo e as notícias que produz são assumidas como verdadeiras e corretas, não apenas no conteúdo mas também na forma. Por isso, a língua, sendo a maior ferramenta de um jornalista, confere-lhe uma responsabilidade social muito maior do que os profissionais habitualmente julgam. A escrita jornalística ajuda a definir a norma de uso da língua na sociedade. O mau uso da língua pode ter um efeito de contaminação. E alguns erros de português são tantas vezes escritos, ditos e repetidos, que passam a ser assumidos pela sociedade como uma regra, sendo a exceção o seu uso correto.

Um dos erros mais comuns é a utilização dos particípios passados. É comum ouvirmos “obrigada por ter aceite o convite”, e na realidade aquilo que está correto é “obrigada por ter aceitado o convite”. Morto não é o mesmo que matado porque correspondem a verbos distintos: morrer e matar, respetivamente.

A utilização dos particípios passados apenas depende do verbo auxiliar que o acompanha. Com os verbos auxiliares ser ou estar usa-se o particípio passado irregular: aceite, ganho, pago, limpo, gasto ou impresso. Com os verbos auxiliares ter ou haver utiliza-se o particípio passado regular: aceitado, ganhado, pagado, limpado, gastado e imprimido. São exceção os verbos encarregar e empregar que não têm particípio passado irregular. Como neste exemplo: “a jornalista ficou encarregada de corrigir o texto”.

Outro erro bastante recorrente é a utilização da palavra constrangedor. É comum associar-se esta palavra a, por exemplo, uma situação embaraçosa. A verdade é que o significado de constrangedor é algo que constrange, isto é, que obriga, que coage, que violenta. Muitas das vezes, aquilo que queremos dizer é que se trata de uma situação é confrangedora. Ou seja, uma situação angustiosa, aflitiva, embaraçosa.

A utilização das palavras ascendência e descendência também é, por vezes, mal utilizada. Descendência quer dizer uma série de indivíduos que procedem de um tronco comum (filhos/ filiação). A ascendência é a linha de gerações anteriores a um indivíduo ou a uma família – remete para os antecessores ou antepassados. Ou seja, se quisermos dizer que a Maria é de origem italiana, devemos dizer “a Maria é de ascendência italiana”.

Também a palavra despoletar é um erro recorrente. Despoletar significa impedir, travar, anular algo (colocar a espoleta). Espoletar significa desencadear, proporcionar, criar condições para (tirar a espoleta). Por isso, dizemos que “o despedimento coletivo do Jornal de Notícias, espoletou uma manifestação”, em vez de despoletou.

Ao encontro de e de encontro a são outras confusões típicas. No primeiro chocamos, no segundo concordamos. O verbo haver, como sinónimo de existir, nunca tem plural, nem o verbo que o possa acompanhar. Sujeito e predicado nunca têm vírgula (deve ler-se esta frase em Caps Lock). Siglas nunca têm plural. Deve respeitar-se as palavras esdrúxulas na oralidade (líderes ou logótipo devem dizer-se como se escreve, por exemplo). E os exemplos podem ser muitos. Mesmo em situações onde não há revisão externa, um truque para corrigir erros é ler e voltar a ler o que se escreveu em voz alta, antes de publicar. Porque a pressa é sempre inimiga da perfeição. Nos casos mais difíceis, existem cursos curtos e baratos para aprender a corrigir os erros comuns de português.

“A minha pátria é a língua portuguesa”, escrevia Fernando Pessoa, pela voz de Bernardo Soares. A língua nascida neste canto da Ibéria foi levada nas caravelas aos quatro cantos do mundo. É hoje uma das grandes heranças dos Descobrimentos e uma das maiores riquezas de Portugal.

Por isso, cabe a cada um de nós, independentemente do local onde estejamos, preservar e privilegiar a língua portuguesa. Se os meios de comunicação social forem exigentes na utilização da língua terão uma maior credibilidade e irão estimular a sua audiência a comunicar melhor.

“A língua é um código e só conhecendo o significado do código nos podemos entender”, afirma Ana Andrade, professora da Universidade Católica, no Porto. “Se usarmos todos esse código bem, vamos receber e transmitir mensagens bem”, mas “se desvirtuarmos o código, o que vai acontecer são falhas de comunicação, a todo o instante, que é algo que acontece todos os dias”, acrescentou. Hoje em dia, a falta de comunicação constitui “um dos grandes males da humanidade” e isso “só trará efeitos nocivos”, salientou a investigadora. Por isso, é essencial que “todos compreendamos o código e o saibamos o usar”, uma “condição sine qua non para que saibamos comunicar uns com os outros”.

Por: Carolina Pinto | ISCTE
Fotografia: Diana Cunha | Universidade Lusófona (Porto)