Jaime Lourenço: “Ficamos mais pobres quando deixamos de ter jornalistas especializados”
A cada vez maior aposta nos jornalistas “canivetes suíços”, que fazem um pouco de tudo, está a matar o jornalismo de especialidade, afirma Jaime Lourenço. O professor da Universidade Autónoma de Lisboa publicou “Jornalismo de Cinema em Portugal”, a primeira obra focada nesta especialização jornalística.
A principal novidade do seu livro é ser a primeira investigação nacional a analisar o jornalismo de cinema português. Além disso, trabalhou na área, por exemplo, no programa Cinebox da TVI. Foi esse trabalho que o fez querer ser o primeiro a investigar este tema?
Na verdade, [o interesse] surgiu antes disso. Durante o mestrado [em Jornalismo], percebi que aquilo que gostaria de investigar era exatamente a área do jornalismo de cinema e que não existia nada desenvolvido em Portugal nesse sentido. Organizei uma conferência que procurasse olhar para esta especialização jornalística, que nos desse pelo menos pistas para aquilo que iria implementar no mestrado. Esse mestrado acabou por ser um relatório de estágio que fiz na TVI, onde aprendi imenso e estou até hoje agradecido à equipa que me recebeu. Por isso, levei esse interesse para o doutoramento, e é da tese que resulta este livro.
O ano de 2019 foi marcante no cinema. No seu livro, aponta vários êxitos de cartaz como Joker, o live action do Rei Leão e Variações. Este ponto foi fulcral para escolher o ano de 2019 como período de análise?
Foi tudo definido previamente. A ideia era termos uma análise o mais atual possível à prática do jornalismo de cinema em Portugal. Para isso, definimos que deveria ser a análise de um ano civil completo para analisarmos toda a cobertura jornalística da atividade cinematográfica, por exemplo, os grandes festivais, os óscares e as grandes estreias. Isto tudo foi preparado no final de 2017 e início de 2018. Curiosamente, o ano de 2019 tornou-se muito singular, tanto pelas grandes estreias que teve, mas também porque foi o último ano de atividade cinematográfica na sua plenitude como a conhecíamos pré-pandemia. Portanto, isso também foi muito interessante de analisar.
Já que refere esse último ano de “normalidade” antes da pandemia Covid-19, após três anos complicados, sente diferença no jornalismo de cinema em relação ao que descreve no seu livro?
Sim [suspiro]. Para pior. Isto porque, como vemos no livro, existe uma cobertura já com algumas fragilidades, mas vasta, tanto nas rádios, online, televisão e imprensa. Na televisão, muitos dos programas que existiam desapareceram, continua apenas o Janela Indiscreta da RTP. Esta situação deveu-se a estratégias editoriais, que prescindiram do cinema ou da cultura, pelo menos no caso da televisão, que é o mais evidente. Portanto, deixaram de existir programas que fizessem essa cobertura. Ainda por cima com ótimos e excelentes profissionais especializados. Leva-nos para uma questão interessante que é termos profissionais totalmente especializados que não estamos a aproveitar para fazer uma boa cobertura nestas áreas específicas.
Lendo o livro, tiramos muitas conclusões sobre o jornalismo de cinema. Lembro-me, principalmente, de ser um jornalismo que se baseia em informar sobre estreias e festivais. Acha que é assim porque é o que as pessoas querem ver ou os media não se preocupam em ir mais além?
Acho que existe uma terceira razão. A questão do cinema surge muito pela dependência daquilo que a própria indústria oferece. Por exemplo, se calhar não vemos tanta informação sobre filmes que não sejam blockbusters ou que não sejam de autores menos conhecidos. A indústria cinematográfica não oferece facilidade de o jornalismo cobrir essas possibilidades. Além de que a agenda do jornalismo de cinema depende da agenda imposta pela indústria. Muitas vezes, os jornalistas não vão mais além porque não conseguem, porque dependem da indústria. Para que um jornalista tenha acreditação para cobrir a rodagem de um filme tem de existir alguém da indústria que lhe conceda esse acesso. Uma particularidade que aconteceu pós-pandemia é que muitas das entrevistas são feitas via Zoom. Já não há contacto direto.
O jornalismo de cinema é uma subespecialização no domínio da cultura. Coordena uma obra que vai ser publicada este ano, sobre jornalismo de especialidade. Que importância têm as especializações jornalísticas?
As especializações jornalísticas têm vindo a perder um pouco a sua dimensão no jornalismo português, devido a estratégias e linhas de gestão editorial adotadas que indicam que o jornalista deve ser capaz de fazer tudo e fazê-lo minimamente bem. Portanto, a partir daí, passámos a ter uma espécie de “canivetes suíços” que precisam de fazer um pouco de tudo, mas não se especializam numa área concreta. Ficamos mais pobres quando deixamos de ter jornalistas especializados em alguma coisa. Este livro que vai sair, na verdade, é um conjunto de várias colaborações de autores académicos e jornalistas, mas o seu propósito é levantar a reflexão sobre a importância dos jornalismos especializados nos nossos dias.