Ana Martins Ventura: “Jornalismo humanitário é História”

Ana Martins Ventura: “Jornalismo humanitário é História”

Este é o momento de os jornalistas começarem a escrever sobre as suas histórias de vida, acredita Ana Martins Ventura. Em entrevista, a repórter, que integra a equipa da AMINotícias e que se tem dedicado à cobertura de temas relacionados com a defesa dos Direitos Humanos, defende a importância do jornalismo humanitário em Portugal e a necessidade de os jornalistas conjugarem a imparcialidade e o seu coração.

 

O que a motivou a tornar-se jornalista na área da ação humanitária, direitos humanos e cooperação para o desenvolvimento?

Recordo que aos 15 anos decidi que a minha profissão seria jornalista. Se conseguisse alcançar esse objetivo, era sobre histórias de vida que queria escrever: histórias que falassem sobre injustiças, dificuldades em ultrapassar momentos difíceis, doenças, dificuldades económicas, fome, preconceito… Pensava que as pessoas com quem convivia todos os dias tinham tantas histórias e tantos factos para contar sobre as barreiras que tinham de ultrapassar. E ninguém as estava a escutar, ninguém sabia realmente como era a vida do outro lado, onde as coisas não são tão perfeitas, onde as leis e regulamentos não funcionam a preto e branco.

Crescer a ver notícias sobre as grandes fomes na Etiópia, Angola, Burkina Faso; sobre a Guerra dos Balcãs, Timor, Palestina e Israel, e, depois, no Iraque e Afeganistão; e todos os crimes hediondos contra a humanidade cometidos durante esses períodos impulsionou uma certa idealização do trabalho como jornalista, a fazer cobertura sobre temas relacionados com a defesa e promoção dos direitos humanos.

Na época, a cobertura jornalística destes acontecimentos era feita por Henrique Cymerman, Judite de Sousa ou Cândida Pinto. Os seus trabalhos de grande qualidade e as suas posturas, e as de outros colegas, foram uma inspiração. Ainda hoje o são.

Mas, o momento decisivo, aquele em que soube que queria unir jornalismo e direitos humanos de forma especializada, foi algo mais próximo, mais local.

A minha mãe trabalhava numa escola e lembro-me que existia sempre um grande cuidado em perceber se havia mudanças no comportamento das crianças, sinais de carência. A partir de um certo momento, dois alunos, irmãos, começaram a aparecer na escola com a mesma roupa, dias a fio, já suja. Na hora do lanche retiravam muitos leites daqueles que as escolas davam. A minha mãe perguntou se estava tudo bem em casa e os meninos disseram que a mãe não tinham dinheiro para comer. A mãe foi contactada e disse que estava realmente a passar por um momento difícil. O caso foi encaminhado para a rede social. Quando a senhora entrou em contacto com a rede, disseram-lhe que na segunda-feira seguinte poderia requerer o apoio alimentar, porque era o dia marcado para esses casos. Era quarta-feira e a primeira questão na escola foi: “Até segunda-feira como é que a mãe e os filhos se vão alimentar?” Foi feita uma recolha particular para ajudar a família até a resposta social ser ativada. Este sonambulismo legal, ou a indiferença do sistema perante as particularidades da situação, despertou-me para as seguintes questões: “Ninguém iria falar sobre o que aconteceria à família se a escola não tivesse assumido a frente da situação?” “O que acontecerá à família no futuro?” Esse foi o momento decisivo.

O que é o jornalismo humanitário? Em que consiste?

O jornalismo humanitário, ou para uma abordagem mais abrangente o jornalismo de direitos humanos, conta histórias de vida ou partes da História que representam momentos em que os valores fundamentais do Humanismo e da Humanidade estão em risco. De cada vez que contamos a história de alguém que está a sobreviver à guerra na Ucrânia, ou que sobreviveu porque conseguiu fugir e hoje está a reconstruir a sua vida em Portugal, essa pessoa representa um momento de convulsão social que ficará gravado para sempre. É difícil dizer o que é jornalismo humanitário. Embora todos os jornalistas, em algum momento das suas carreiras, trabalhem sobre temas ou casos que envolvem fortes abordagens à defesa e promoção de direitos humanos, cooperação para o desenvolvimento e intervenção social, é muito raro uma redação ter um jornalista a trabalhar apenas sobre estes temas. Digo raro, mas é provável que nem exista. Não existindo uma especialização, um afunilar de conhecimentos específicos, torna-se difícil encontrar, por ora, uma definição em Portugal.

No momento – e talvez esta definição até seja significativa para o futuro -, jornalismo humanitário é História. Em cada entrevista estamos a escrever a História das convulsões sociais que nos abalam no momento. Estamos a escrever a História de como foram derrotados tiranos, a História de como a Humanidade sobrevive a partir do percurso de cada pessoa.

Assumir o jornalismo humanitário como um registo histórico é um dos motivos pelos quais a AMI (Assistência Médica Internacional) quer transformar todas as reportagens candidatas aos Prémio AMI – Jornalismo Contra a Indiferença num arquivo de consulta livre para jornalistas, professores e estudantes, por representar uma parte da História contemporânea não só portuguesa, mas internacional.

Precariedade, preconceito e tempo
Ao longo da sua carreira, quais foram os principais desafios que enfrentou? E como superou esses desafios?

Os meus desafios serão os desafios de muitos jornalistas: a precariedade. Muitas vezes, temos de esperar meses para ver uma fatura de prestação de serviços paga – às vezes, anos. E acontece também termos um contrato e, de repente, porque a empresa está a passar por dificuldades, a primeira coisa que atrasa são os salários da redação.

Esta precariedade e insegurança grassou durante décadas nas redações, sem que a sociedade, cá fora, desse conta da situação que a maioria dos jornalistas viviam. Falava-se da precariedade dos professores e da falta de condições de trabalho para médicos e enfermeiros, e acompanhámos, há uns, anos a justa reivindicação dos estivadores por um contrato coletivo de trabalho. Fizemos cobertura de greves e manifestações destes grupos profissionais, mas não falámos publicamente sobre as condições de trabalho e de vida dos jornalistas. Não se falava dos seus burnout, tão frequentes e, não raras vezes, tão mal interpretados.

Uma greve de jornalistas implicaria, por si só, uma violação de um direito fundamental: o direito à informação. Mas, uma marcha silenciosa feita por milhares de profissionais teria despertado a sociedade há mais tempo e não estaríamos agora a assistir a uma machadada na História com o que está a ser feito ao Jornal de Notícias, ao Diário de Notícias, à TSF, assim como a outros títulos que também estão a enfrentar profundas crises e representam a nossa História.

Depois, há dificuldades do trabalho no terreno, que envolvem sobretudo a falta de meios e que levam a um certo aprimorar da criatividade: criatividade para fazer fotografias, para captar planos só com telemóvel, para fazer crescer o tempo para fechar uma reportagem que deveria levar tempo a ser investigada… Mas isso todos vivemos, e faz parte. É muitas vezes o que dá algum colorido às situações.

Enfrentei situações muito desafiantes nos bairros ilegais. Ali estamos num contexto onde há muita injustiça social, onde as pessoas estão carimbadas com estereótipos e preconceitos que até mesmo nós, comunicação social, sem querermos, alimentamos quando passamos mais notícias negativas associadas aos bairros do que as positivas sobre as conquistas, a superação, os projetos sociais inovadores ou o sentido de comunidade e de família que se vive nos bairros e que salva as pessoas. E salva de uma forma completa, desde a solidão, à fome. Nesse ambiente, muitas vezes adverso, é preciso gerir as reações das 

pessoas com muito respeito e aceitação, e esperar pelo tempo delas.

No âmbito do 5º Congresso de Jornalistas, como é que encara o papel do jornalismo humanitário na formação de opinião pública e na mobilização da sociedade civil para a defesa de causas humanitárias?

Vivemos tempos conturbados. Soa a cliché, mas resume o que vivemos hoje, especialmente na área do jornalismo. Não é novidade que os jornalistas, que escrevem tantas vezes sobre a pobreza, o preconceito e a desproteção de outras pessoas, estão, eles próprios, a viver as mesmas situações.

Se há algo que me irrita profundamente é ver como o jornalista e o jornalismo são diariamente alvo de comentários depreciativos e da criação de estereótipos em programas de televisão. É comum num enredo de uma telenovela um dos personagens dizer: “Esses jornalistas são uma corja”. Esses comentários não deviam ser alimentados, porque esses programas chegam a uma franja larga da população e criam uma imagem e alimentam um ódio latente contra a profissão, retirando-lhe dignidade.

Este é o momento ideal para realizar o 5.º Congresso de Jornalistas. Agora, mais do que nunca, é determinante debater o que está a acontecer à profissão e encontrar as soluções certas e rápidas. E talvez seja o momento para os jornalistas escreverem sobre as suas histórias de vida, transformando-as em reportagens em que veremos como os direitos humanos não são salvaguardados. Não é preciso viver num bairro ilegal, estar preso e em situação de vulnerabilidade ou estar em situação de sem-abrigo para termos os nossos direitos violados. Por isso, o jornalismo humanitário tem um lugar cada vez mais necessário, porque permite colocarmo-nos no lugar dos outros e percebermos que as histórias das outras pessoas podem ser as nossas. É isto que é preciso contar, para que a sociedade não seja omissa e para não passarmos pelas pessoas na rua sem as vermos.

Cinco sentidos e o coração
Que elementos que uma peça jornalística de cariz humanitário tem obrigatoriamente de reunir?

A jornalista Graça Henriques disse-me: “Uma reportagem escreve-se com os cinco sentidos e o coração”. Os jornalistas devem ser sempre imparciais e apresentar de forma igual os diferentes lados de uma história, mas a fórmula ideal é conjugar a imparcialidade e o coração. Assim deve ser nas reportagens sobre direitos humanos: o sentir tem de estar apurado. Depois, é necessário salvaguardar os entrevistados. As pessoas que entrevistamos são o centro da reportagem. É a partir delas que se desenrola o apuramento de factos junto de instituições. Mas, é cada momento dessa história de vida que vai humanizar a reportagem e essa é a linha vital do jornalismo humanitário, sentir e proteger as pessoas.

Aqui acrescem as responsabilidades. Se numa cobertura jornalística generalista é essencial salvaguardar a privacidade, a dignidade e o respeito por todos os entrevistados, numa reportagem sobre direitos humanos essa salvaguarda é ainda mais delicada. Estamos a entrevistar pessoas em situações de vida muito difíceis, que estão fragilizadas e, muitas vezes, imbuídas de tal revolta contra as injustiças sociais, e que não medem o quanto podem expor-se durante a reportagem se não utilizarem as palavras certas.

Qual dos seus trabalhos mais a marcou e porquê?

Foram muitos. Todos deixam uma marca. Algo fica a martelar na mente durante umas semanas e, de repente, assombra-me quando estou descontraída, com uma imagem, um cheiro ou uma cor que trazem de volta aquela memória sobre o lugar onde estive a fazer uma reportagem.

Mas há quatro que gostaria de destacar.

A reportagem “Esta é uma vitória nossa”, sobre os realojamentos de moradores do Bairro da Jamaica, que começaram em 2018 e foram concluídos recentemente. As pessoas esperavam há décadas pela oportunidade de uma nova vida, e era muito importante passar a mensagem de que aquelas pessoas, ao contrário do que era dito nos comentários nas redes sociais, queriam desde sempre sair do bairro, mas, por condições de vida extremamente adversas, não conseguiam.

Depois, a reportagem “Tóquio 2020”, sobre como se superam obstáculos profundos para chegar aos jogos paralímpicos.

A reportagem “Slava Ukraini. Heroiam Slava. A resistência à Rússia também tem mão portuguesa”, realizada em Varsóvia, na Polónia, sobre as primeiras semanas de guerra na Ucrânia, a organização da ajuda humanitária civil e a viagem de centenas de refugiados da Ucrânia até Portugal. Foi  uma reportagem que me marcou pela forma pueril com que tantos portugueses, não associados a ONG, financiaram viagens, com valores muito elevados, até às fronteiras com a Ucrânia, para ajudar pessoas a fugirem da guerra e a recomeçarem as suas vidas em Portugal.

E, por fim, a reportagem “Horizonte Cortado”, sobre mulheres a cumprir pena no Estabelecimento Prisional do Funchal, que não têm acesso a planos de estudos, ao contrário dos homens a cumprir pena no mesmo estabelecimento.  Isso impede-as de concluir o 12.º ano ou frequentar um curso universitário, para terem uma nova vida. A única formação a que estas mulheres têm acesso é na área das limpezas, obrigando-as a usar, todos os dias, como farda sobre a roupa, um avental. Esta situação traduz uma total desigualdade de género e de direitos, e remete as mulheres para um patamar de servilismo, que as manterá sempre em situação de carência social. 

O que é que diria a alguém que pretende seguir jornalismo humanitário?

Diria para fortalecerem a mente e deixarem o coração crescer. Uma mente bem informada, argumentativa e questionadora deixar-vos-á preparados para decidirem quando uma história é válida e quando vale a pena apresentar uma causa numa reportagem. E um grande coração guiar-vos-á até às boas histórias e à melhor forma de as contar, dignificando a vida de quem estiver do outro lado do gravador ou da câmara.

Ana Martins Ventura

Licenciada em Comunicação Social, na Escola Superior de Educação, do Instituto Politécnico de Setúbal, foi no histórico jornal regional “O Setubalense” que começou a sua carreira de jornalista. Aí desenvolveu também a paixão pela investigação e pela reportagem. Recentemente, trabalhou como freelancer para os jornais Diário de Notícias e Novo Semanário, com uma breve colaboração com a Visão, tendo desenvolvido reportagens sobre política, economia e temáticas sociais, como a violência de género, a saúde mental, os desafios dos cuidadores informais ou as condições de vida em bairros ilegais.

Por: Fábio Fernandes; Carolina Pinto; Iara Silva; Ana Carolina Guerreiro; Inês Vieira | ISCTE