Paulo Martins: E se falássemos das nossas responsabilidades?

Paulo Martins: E se falássemos das nossas responsabilidades?

Esta comunicação procura refletir sobre a responsabilidade individual dos jornalistas no exercício profissional. Lança dez perguntas sobre a nossa atitude perante a hierarquia, a nossa margem de manobra na execução de reportagens, o nosso papel no combate à desinformação, a nossa tendência para conceder o anonimato às fontes, acolher sem escrutínio informação de redes sociais ou escrever para algoritmos. Desafia-nos a olhar o mundo pelos nossos olhos e a não ter receio de revelar métodos de trabalho.

A margem de decisão “é sempre suficientemente ampla para que se possa falar em responsabilidade individual do jornalista”, escrevia Mário Mesquita há 20 anos, na sua mais marcante obra, “O quarto equívoco – o poder dos media na sociedade contemporânea”. Se ainda andasse por aí, estou certo de que me acompanharia nas interrogações que formulo. São dez perguntas a que devemos dar resposta, se queremos mesmo assumir a nossa responsabilidade enquanto jornalistas. E se damos valor à independência e à autonomia, condições para satisfazermos o direito dos cidadãos à informação.

Por que aceitamos ordens ilegais ou antiéticas provenientes da hierarquia empresarial?

A Diana Andringa recomenda um antídoto geralmente eficaz para travar abusos de diretores e quejandos: “Passa essa ordem a escrito”. Bem se sabe que a responsabilidade judicial é de quem assina uma peça, mas a proteção reforça-se quanto alguém acima, na hierarquia, se atravessa. E o mais provável é que, perante o desafio, encolha as unhas.

Se a ordem vem de outras bandas, invoque-se o artigo 12.º do Estatuto: “Os jornalistas podem recusar quaisquer ordens ou instruções de serviço com incidência em matéria editorial emanadas de pessoa que não exerça cargo de direção ou chefia na área da informação”. Esta norma também de aplica a conselhos de administração.

A responsabilidade social é um valor de que jornalista e empresa estão investidos, mas o significado não é o mesmo. No caso do jornalista, como princípio ético basilar, opera-se perante o público, não perante a empresa ou a hierarquia.

De que margem de manobra dispomos quando executamos tarefas previstas em contratos de órgãos de comunicação com entidades externas?

Contratos que tudo definem, desde abordagens jornalísticas a temas e convidados para eventos, empurram o jornalista para a condição de refém. Sabe ao que vai? Tem consciência do condicionamento prévio, até de escolha de fontes? Onde fica a sua autonomia e independência? Exige-se coragem para não aceitar tais contratos, tanto como para encetar um combate firme ao papel comercial exercido por algumas direções editoriais, que acarinham negociatas mascaradas de Jornalismo, quando não se envolvem diretamente nelas.

Como lidamos com viagens a convite, para realizar reportagens?

Se não conseguimos determinar a a natureza da nossa intervenção, recusemos ser marionetas. A revelação pública da entidade que convida é um elementar exercício de transparência, mas o que temos mesmo de defender é a nossa credibilidade, património inestimável.

Qual deve ser o nosso papel no combate à desinformação?

Jornalistas que deixam passar mentiras proferidas pelas fontes são cúmplices de desinformação. O nosso dever primeiro é transmitir a verdade. A liberdade de expressão não pode ter costas largas, muito menos para alimentar os discursos de ódio que a extrema-direita difunde.

O que ganhamos em conceder o anonimato às fontes por dá cá aquela palha?

A ocultação da identidade generaliza-se. No campo do Jornalismo de Política, tornou-se moda permitir que se atire a pedra e esconda a mão. Violar a norma ética que obriga a identificar quem emite uma opinião é oferecer cama quente a políticos cobardolas. E é dar um golpe na própria reputação, porque o jornalista é percecionado como porta-voz deste setor ou daquela entidade.

Siga-se o código do El Pais, versão de 2021, que determina a revelação das razões para a confidencialidade, circunscreve a aceitação de um pedido de não identificação a “motivo grave” – que deve ser explicitado – e deixa um conselho: “Na prática habitual, o redator deve fugir de fontes anónimas e citar o nome das que falaram com ele”. Simples!

Vale a pena sermos escravos de métricas, visualizações, palavras-chave?

Não permitamos que os algoritmos sejam o aferidor da qualidade do nosso trabalho. Não sejamos agentes de informação fast food. Não nos deixemos contagiar pelo entretenimento. Não nos rendamos ao capitalismo informacional sem rei nem roque, neste e noutros aspetos.

Para quê promover as redes sociais digitais ao estatuto de fontes, sem escrutínio, nem contraditório?

A vulnerabilidade à informação disseminada nas redes, sobretudo no acompanhamento de eventos em continuidade, é cada vez mais evidente. Quando o tempo de avaliação se reduz e privilegiamos a rapidez de transmissão, secundarizando o rigor, a porta abre-se. A vergonhosas violações da privacidade de cidadãos que o tempo não repara. À manipulação. À desinformação. Ao sensacionalismo.

Por que olhamos para a realidade pelos olhos de outros?

É preciso resistir às abordagens dominantes de acontecimentos, que contribuem para formatar um mundo a preto e branco, onde a emergência de interpretações alternativas é condenada. Não abdiquemos de contar o mundo pelos nossos óculos. O mesmo se diga em relação ao país, que tantas vezes vemos à distância, a partir de Lisboa ou do Porto, com preconceitos e ideias feitas. Recoloquemos no centro do nosso trabalho o dever de dar voz a quem não tem voz. Já Chico Buarque lamentava: “A dor da gente não sai no jornal”.

Por que não nos empenhamos mais na revelação dos nossos métodos de trabalho, dos constrangimentos que enfrentamos e, já agora, das nossas legítimas opções políticas, partidárias ou clubísticas?

Não devemos recear o escrutínio público. É através dele que reforçamos a confiança que os cidadãos depositam em nós, num sistema mediático cacofónico e fragmentado, em que o Jornalismo compete com outras formas de comunicação.

Por que, finalmente, não recuperamos a matriz coletiva do exercício profissional, criando terreno para o debate e a troca de ideias, a benefício do cidadão e da descoberta de respostas às perplexidades que enunciei?

Não estou certo de que ainda se discutam opções editoriais nas redações. Não estou certo de que algumas não tenham sido convertidas em “fábricas de notícias”, em que a quantidade derrota a qualidade. Ousemos reabilitar os conselhos de redação. A propósito: há por aí boas notícias neste particular.