João Figueira: O jornalismo e a valorização da democracia
Há mais de um século Joseph Pulitzer afirmava que a imprensa e a democracia avançarão a par ou caem juntas. Hoje, colocados diante de quadros políticos e económicos onde a incerteza agravada pela polarização ideológica torna mais densas e complexas as sociedades contemporâneas, ganham força as narrativas da crise jornalística e das fragilidades da democracia. Ao mesmo tempo, emergem sinais de alerta, proclamando urbi et orbi que sem um jornalismo forte e livre o estado democrático claudica e esmorece. O que significa que a causa do jornalismo e da democracia é comum.
O velho princípio de vasos comunicantes anunciado por Pulitzer nos primeiros anos do século passado parece, assim, manter-se atual, no sentido em que continuamos a considerar que a boa saúde das duas entidades — jornalismo e democracia — depende do papel responsável que cada uma assume e desempenha publicamente, com efeitos e repercussões recíprocas.
O problema é que a existência de democracia, por si só, não produz nem providencia, bom jornalismo. Evidentemente que nada nem ninguém melhor que ela proporciona as condições necessárias às práticas jornalísticas ideais. Liberdade e diversidade de expressão e de opinião constituem, sumariamente falando, pilares essenciais da vivência e do espaço informativo. Este, justamente por se autodefinir como espaço aberto aos outros e à diferença, acaba por ser um território permeável aos que o aproveitam como instrumento de corrosão do edifício democrático. O qual também corre o risco de se tornar mais pobre, quando o espaço mediático olha, escuta e dá voz quase sempre aos mesmos protagonistas e às mesmas opiniões e visões de mundo.
Daí que discutir as relações próximas, diria internas, entre jornalismo e democracia, além de ser uma questão que é da maior acuidade e pertinência, ela impõe-se-nos pela força de uma realidade em permanente estado de invasão mediática. Embora devêssemos juntar à equação, quando falamos de pluralismo e diversidade, a ideia de que estas noções, levadas ao limite, implicam a deslocalização e descentralização dos chamados lugares simbólicos do poder e de onde se fala.
Sempre que assim for, a democracia serve, na realidade, os melhores propósitos do jornalismo e este retribui essa liberdade, expandindo-a, no plano noticioso, através do exercício de uma pluralidade e diversidade sociológica, económica, cultural e também ideológica. Porque o objetivo do trabalho é informar bem, aclarar o que é confuso, iluminar a opacidade dos factos aparentes e eliminar o folclore superficial de um qualquer gato erigido à categoria de personagem mediática.
Estas minhas palavras, como se percebe, têm subjacente a ideia de que se o jornalismo e a democracia caminham de mãos dadas, isso significa que têm interesses, valores e princípios em comum. Nesta perspetiva, a tal corrente comum de interesses e valores joga a favor de ambos; isto é, se o estado democrático confere à Informação honras de um direito constitucionalmente protegido por a considerar um bem estratégico e de primeira necessidade, então ela, Informação, possui o dever ético de atuar socialmente na defesa dessa Democracia.
O que significa que o jornalismo não é um ator social desinteressado, na medida em que ao estar do lado dos valores culturais (e não só) que inspiram os princípios matriciais da sua ação e cuja validade e relevância o estado democrático consigna no seu texto constitucional, leva a que se posicione contra as ideias e a visão de mundo e de sociedade que se opõem a esse justo equilíbrio civilizacional. Se assim não for, cai por terra o argumento de que sem a presença de um jornalismo forte e independente, a democracia fica mais frágil. Na verdade, esta apenas fica mais forte quando as práticas jornalísticas contribuem para a sua consolidação, cientes do avanço civilizacional que ela representa no quadro histórico dos sistemas políticos.
Abreviando razões e argumentos, é preciso ter presente que o exercício do jornalismo ocorre dentro de contextos precisos, onde a conflitualidade de interesses e objetivos quase sempre se evidencia, mas onde, em última instância, não obstante a sedutora narrativa populista sempre tão apelativa e amiga das audiências, é imperioso estar atento para que esse ator social chamado informação jornalística não perca de vista a ideia de que o seu papel é contribuir para o enriquecimento da democracia. Nunca, seja a que pretexto for, para a sua degradação.
Já utilizei, em outras ocasiões, a noção de que o jornalismo deve ser um democrata radical, na perspetiva de que é no rigoroso cumprimento da sua missão e no respeito escrupuloso pelos seus valores éticos e regras deontológicas que ele se realiza como entidade autónoma e desejavelmente livre nas sociedades democráticas. Por outras palavras, é no sentido mais nobre da sua permanente dignificação profissional, que o jornalista se prestigia a si e ao seu trabalho, vincando com isso a relevância social do papel que desempenha e o respetivo contributo para o tal fortalecimento da democracia.
É sabido que os tempos estão difíceis, com as redações exauridas e com a cultura dominante da informação feita à pressa a condicionar o resultado final. Daí o risco acrescido de ao populismo político se juntar o populismo mediático, sabendo-se que ambos funcionam com o mesmo combustível.
Mais uma razão para se desejar a prática de um jornalismo que, para estar em consonância com a democracia que defende, deve clara e frontalmente assumir a parcialidade da sua posição. Há que decidir, pois, se o jornalismo deve atuar no processo de valorização da democracia, respeitando-se a si próprio, ou se, eufórico com o seu próprio espetáculo, deve participar na erosão de ambas.