Homenagem aos jornalistas que trabalharam sob censura
Querido camarada.
Foste proibido por inconveniente. Amordaçado por seres jornalista.
Fizeste mossa, esticaste a corda, rompeste o cânone. Foste lá, viste, escreveste e disseste, às tuas expensas.
E resististe. Obrigada. Estamos orgulhosos de ti. O teu exemplo sobreviverá a todos os tempos.
Levantaste todos os dias da cama para ir para a redação, para a rua, para qualquer canto, na tentativa de contornar o censor. Contar uma história que não fosse a preto e branco.
Quanta paciência, humor, palavras subtis e ditos nas entrelinhas te exigiu este ofício.
A censura, essa, tanto era declarada como tácita. Imposta de fora e, às vezes, ditada por dentro.
Quão cruel seria aquele teu pensamento – “Mais vale não escrever que vai ser riscado”. O espaço em branco no jornal ou o silêncio na televisão e na rádio eram proibidos, para não se notar a ausência.
Achas que hoje já disseste – dissemos – tudo o que ficou então por escrever, a realidade que ficou por contar?
Querida camarada.
Como foi o primeiro dia? O dia seguinte sem censura? O que é que escreveste? O que é que tinhas mais pressa de dizer?
Quantas vezes ainda esticaste a mão para a “pasta dos recortes”, das provas para enviar ao “exame prévio”, num gesto mecânico feito de quase cinco décadas?
Quantos quilómetros ainda fizeste, para a frente e para trás, madrugada alta, para as entregar lá no censor?
Durante quanto tempo temeste que outra censura se abatesse sobre as tuas palavras?
Foste lá fechar a censura, à Rua da Misericórdia? Ou aos núcleos do Porto ou de Coimbra?
Como maltratamos a memória, que nem encontramos as suas moradas.
Quem sabe onde se afiavam os lápis azuis, nas delegações do resto do país?
O que é que escreveste no dia seguinte, sem vigia? Sem o medo de emprestar a tua voz, de dar a cara?
Sr. censor.
Derrotaram-te. Milhões de palavras censuradas não contiveram a corrente.
Rimo-nos hoje das tuas patacoadas. Dos cortes sem sentido com que entretinhas o ofício.
Lana-caprina para dar algum sentido à função.
Mas as palavras encontraram forma de te fugir. A Revolução deu-se na mesma e foi notícia.
Aqueles que chamaste de “transgressores” e “subversivos” podem hoje vestir essas
palavras como elogios.
Hoje escrevemos a caneta por cima dos teus cortes a lápis.
Não tinha razão “o inteligente”, ao contrário do que dizia o poeta. Não só não acabaram as canções, como não acabaram as notícias, nem o pensamento livre.
Quem mandaste suceder-te?
Queridos camaradas.
Nascemos e crescemos em liberdade.
Foram as vossas memórias, as vossas notícias, as vossas histórias que nos fizeram
compreender como foi viver sob aquela mordaça.
Sabemos, porque vemos, ouvimos e lemos. Mas não vivemos.
Nunca vincamos a caneta no papel com medo de que alguém o riscasse. Nunca demos voz e cara a algo que não quiséssemos dizer. Mas, 50 anos depois, os ventos “não sopram de feição”.
Não chegam de lápis na mão, mas já passeiam pelas redações com ordem para
condicionar: os administradores. Não trazem a agenda debaixo do braço. Parece cada vez menos declarada, mas existe.
Não sabemos que cor tem o lápis: quem – afinal – manda nas nossas rádios, nos nossos jornais, nas televisões. Que objetivos têm, além de tentar tirar-nos a autonomia?
Com mais ou menos subtileza, o lucro fala mais alto do que a notícia e instala-se a precariedade.
Voltamos a escutar relatos de tentativas de condicionar a atividade dos jornalistas e de ameaças à liberdade de escrever, quando sabemos que apenas ao rigor e à deontologia devemos vassalagem.
Quando se cumpre meio século de liberdade e democracia, resta-nos resistir, sabendo que fazer jornalismo é construir a liberdade.
Como disse, um dia, um poeta: “Só nos faltava agora que este Abril não se cumprisse.”